quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Filosofia da Libertação: Origens e ruptura epistemológica

É correto afirmar que apesar de romper com a epistemologia antieurocêntrica a filosofia da libertação não se distancia da filosofia tradicional greco-romana? Também podemos compreender que dentre os temas que não encontraram guarida no debate da filosofia da libertação está o diálogo intercultural?

Foi nesta conjuntura mundial que surgiu a Filosofia da Libertação. Trata-se de uma tomada de consciência do mundo periférico: aqueles que estão fora do sistema-mundo - os que já foram colônias da Europa e que ainda vivem na dependência (colonial) da Europa e Estados Unidos - percebem que não apenas são dependentes do ponto de vista econômico, mas também, na perspectiva da produção cultural e científica, persistem profundas marcas coloniais. Portanto, torna-se urgente a ruptura epistemológica profunda. E essa tomada de consciência vai dar-se em todas as regiões da periferia: Ásia, África e América Latina; nesta última antes que as restantes. E tudo dentro de um discurso filosófico e antes do discurso pós-moderno, que se situa a partir de 1979.
Dessa forma, na Índia, em 1973, o historiador marxista Ranajit Guha, começa a interpretar a história de seu continente com novas categorias (Veja Spivak, 1987). “Trata-se, então, de uma crítica epistemológica diante do monopólio hermenêutico dos Estados Unidos e Europa em relação à ciência histórica.” (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 399). Na África, igualmente, Paulin Hountondji em sua Sur la "philosophie africaine" - Critique de l’éthnophilosophie (HOUNTONDJI, 1977) mostra que a interpretação de P. Tempel (TEMPEL, 1949) sobre o material etnológico banto:
... não era uma filosofia propriamente africana, mas estritamente européia, no que diz respeito às perguntas e respostas filosóficas. Necessitava-se de uma nova visão a partir da periferia africana para poder expressar uma “filosofia banta”. Por sua parte, Edward Said, o pensador árabe-palestino, empreenderá uma tarefa descolonizadora fundamental – a partir da literatura francesa e depois a partir da anglossaxônica - em sua obra de 1978 Orientalism - Western conceptions of the Orient. (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 399).
Assim, a Filosofia da Libertação na América Latina começou antes que nos continentes asiático e africano, pois se inicia no final da década 60 e se apresenta à comunidade filosófica com a comunicação de E. Dussel Metafísica del sujeto y liberación no II Congresso de Filosofia em Córdoba, Argentina, em 1971. (DUSSEL, 1971).
A filosofia da libertação é então o primeiro movimento filosófico que começa a descolonizar a epistemologia da própria filosofia, criticando, desde a periferia mundial, o pensamento moderno europeu e norte-americano situado no centro do sistema-mundo. No início de seu nascimento nem seus criadores nem seus críticos tiveram consciência desse significado mundial, que readquire mais sentido que nunca no início do século XXI. (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, pp. 399-400).
Certamente o fato de todas as regiões periféricas criticarem o colonialismo dos Estados Unidos e Europa deu muita força e visibilidade à filosofia da libertação.
Dentro do pensamento filosófico latino-americano, a filosofia da libertação adquire autonomia em torno de 1969 por razões que serão brevemente explicadas.
Um grupo de filósofos - Leopoldo Zea no México; Arturo Ardao no Uruguai; Francisco Romero na Argentina e outros - que estudaram durante 20 anos a filosofia em seus respectivos países e, ao mesmo tempo, fizeram uma interpretação do pensamento filosófico de toda a América Latina – o que os obrigou a estudar um sem número de pensadores desconhecidos. No final da Década de 60 fizeram um balanço de suas investigação para ver o sentido de todo esse pensamento pesquisado. De modo geral, concluíram que, desde a conquista, houve, na América Latina, uma filosofia colonial, embora com rosto próprio. Numa atitude ambígua, “Os filósofos autóctones aplicavam o aprendido no centro metropolitano (Europa e depois os Estados Unidos) a situações correspondentes da realidade da América Latina” (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 400).
O debate surgido dentro desse grupo - que conhecia realmente o que foi produzido de filosofia em ‘’nossa América’’ – sobre a existência ou não de uma filosofia latino-americana original e autêntica foi fundamental para o nascimento da filosofia da libertação.  Em 1968, o filósofo peruano Salazar Bondy levanta esta questão, em sua obra de 1968: Existe uma filosofia de nossa América? (SALAZAR BONDY, 1968). O pensador mexicano L. Zea responde, em 1969, com sua obra: A filosofia como filosofia sem mais. Zea afirma que os filósofos latino-americanos enquanto pensaram a nossa realidade produziram uma filosofia original e autêntica. Salazar Bondy, por sua vez, acentua:
... à medida que fomos colonizados e dependentes do ponto de vista cultural, econômico e político, igualmente o fomos no nível epistemológico e, por isso, não podíamos pensar autenticamente, porque a realidade mesma pensada estava negativamente determinada como dominada. Além disso, tão pouco se havia alcançado uma independência filosófica suficiente para pensar não como comentaristas ou como os que aplicavam filosofias do centro na periferia, mas como aqueles que começavam a pensar metodicamente e de modo autônomo sua própria realidade sócio-histórica. (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 400).
Assim sendo, a filos0fia da libertação poderia tanto partir da tradição da filosofia latino-americana, como da autoconsciência de sua história, ou então, à luz de uma cultura dominada, poderia partir da negatividade dessa filosofia de Salazar Bondy. Na verdade, a filosofia da libertação assume como própria a história da filosofia latino-americana, mas indo além da negatividade conhecida; e  começa a pensar, positiva e filosoficamente, não só a dominação e seus efeitos como ponto de partida, mas a realidade do processo da libertação possível, o que exige tanto  categorias filosóficas como método novos. Trata-se de um pensamento que trabalha a partir da periferia, pensando como positividade o processo de libertação do povo da América Latina.
Pode-se apontar outros elementos que favoreceram o surgimento desse movimento de libertação filosófica como a intervenção dos Estados Unidos na América Latina, a partir de 1954 com o golpe na Guatemala e o aparecimento de vários livros como a Pedagogia do oprimido de Paulo Freire (1968) e Sociologia da Libertação de O. Fals Borda (1968), em que se debate sobre a dialética dependência-libertação. “Surgiu, assim, a primeira ideia de uma ética, de uma filosofia prática da libertação, além do mero comentário dos filósofos europeus. Era necessário superar as ontologias hegeliana e heideggeriana. Contudo, como se poderia fazer isso?” (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 501)
Alguns elementos da etapa originária da filosofia da libertação (1969-1973)
Tendo como modelo o questionamento da Teoria da Dependência, filósofos de diversas universidades argentinas, antenados com filósofos dos outros países, reuniam-se periodicamente. Realizavam vários colóquios, semanas filosóficas, congressos e simpósios para debater em conjunto as questões levantadas pela nascente filosofia da libertação. Mas o Primeiro Congresso Nacional Argentino de Filosofia (1971) teve repercussão não só na Argentina, mas em todo o subcontinente latino, sobretudo a partir das comunicações dos participantes como esta de Dussel:
É possível uma filosofia autêntica em nosso continente ainda subdesenvolvido e oprimido cultural e filosoficamente? Só é possível com uma condição: que, a partir da autoconsciência de sua alienação, opressão, sabendo-se então estar sofrendo na própria frustração a dialética da dominação, se pense a dita opressão; vá-se pensando junto, desde dentro de uma práxis libertadora, uma filosofia ela mesma também libertadora (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 402).
Na II Semana Acadêmica (1971), J. C. Scannone, tratando explicitamente da libertação, propõe que se supere por novas linhas de mediação libertadora, os três tipos de projetos socioeconômicos: o liberal, o desenvolvimentista de eficiência tecnológica e o da mera inversão que subverte os termos sem transformação ontológica, concluindo que : “pela práxis libertadora irá surgindo do próprio povo latino-americano o autêntico projeto nacional ...”  (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 402).
Nessa Semana Acadêmica, Scannone chama atenção para a linguagem da libertação a fim de libertá-la de elementos ideológicos à medida do possível; Dussel, a partir da crítica à modernidade, apresenta a questão da exterioridade e da alteridade, conceitos fundamentais encontrados no pensamento de Lévinas que se contrapõem à totalidade, conceitos esses que serão aprofundados mais adiante.
O grande número de semanas acadêmicas filosóficas resultou na publicação de um livro em comum intitulado Para uma filosofia da libertação latino-americana, em cujo frontispício háo seguinte manifesto:
Um novo estilo de pensar nasceu na América Latina. Não se trata de um pensar que parte do ego, do eu conquisto, eu penso, ou o eu como vontade de poder europeu imperial (tendo-se em conta que os Estados Unidos e Rússia são dois prolongamentos do homem moderno europeu) [...] A filosofia da libertação pretende pensar desde a exterioridade do outro, do mais além do sistema machista imperante, do sistema político opressor [...] Na América latina e, muito rápido, na África e na Ásia, a única filosofia possível será a que se lança na tarefa destrutiva da filosofia que os ocultava como oprimidos, e, depois, no trabalho construtivo, a partir de uma práxis de libertação, do esclarecimento de categorias reais que permitam ao povo dos pobres e marginalizados aceder à humanidade de um sistema futuro de maior justiça internacional, nacional, interpessoal. (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 403)
Nesse livro comum, temos textos notáveis dos filósofos: O. Adiles, de H. Assmann, M. Casalla, H. Cerutti, Carlos Cullen, J. de Zan, E. Dussel, A. Fornari, D. E.Guillot, A. E. Kinen, R. Kusch, A. Roig, J. C. Scannone. Todos os textos desses autores são constitutivos da etapa originária da Filosofia da Libertação e, por isso, mereceriam comentários, à medida que, cada um, a seu modo, fala de um ou mais aspectos da filosofia da libertação

A presença latino-americana no movimento

No Simpósio da Filosofia Latino-americana (1973) compareceram muitos filósofos de outros países da América do Sul, como L. Zea do México. Salazar Bondy do Peru e Schwartzmann do Chile e outros, o que permitiu que se iniciasse um diálogo latino-americano sobre a filosofia da libertação. Procurou-se em conjunto aprofundar a crítica ao eurocentrismo e à dominação. E essa crítica deveria ser feita “a partir do outro, dos explorados e excluídos, desde o povo latino-americano de indígenas, afro-americanos, Classe trabalhadora, camponesa e popular, marginais, feministas, movimentos antirracistas.” (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 406) Era preciso pensar a partir “dos pobres”, que estão no exterior e excluídos da totalidade do mundo ocidental.
Salazar Bondy intervém pela primeira vez nesse movimento de libertação que tinha a idade de quatro anos, dizendo:
Não vou usar a palavra povo a fim de não confundir ... Para poder sair da situação [negativa de subdesenvolvimento] ... penso que se pode fazer em três dimensões. Primeiramente, permitir ... uma crítica que implica tratar de conseguir a máxima consciência ... são os instrumentos da epistemologia, da situação crítica histórico-social ... Segundo, uma dimensão que dê novos fundamentos aos problemas ... E, em terceiro lugar, consistiria em buscar a reconstrução de um pensamento filosófico que seja resultante da crítica. (apud DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 407).
Veja que o terceiro momento não é uma interpretação negativa, mas a construção de uma teoria que visa à transformação da realidade; só o terceiro momento é filosofia da libertação. Os filósofos argentinos já haviam desenvolvido uma ética, ”porque é o momento em que a filosofia redefine a práxis como criadora, transformadora, que de todos os modos partia da política, entendida esta última como a filosofia primeira” (DUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 407).
Zea também intervém nesse simpósio, com estas três teses de fundo: 
1) É necessário uma filosofia da libertação, porém isso aconteceu sempre porque o melhor de nossa filosofia desde as guerras de emancipação foram filosofias que pensaram processos de libertação [...] Isto é, a filosofia da libertação  não é uma novidade; 2) Não se pode esperar que nossa cultura se liberte para depois começar o processo de pensar filosoficamente a libertação (objeção à posição de Salazar Bondy); 3) A filosofia da libertação que deve colaborar na tomada de consciência da necessidade da libertação deverá pugnar pela libertação “do homem”, do “homem sem mais” (apudDUSSEL, MENDIETA & BOHÓRQUEZ, 2009, p. 407)
Sendo assim, se Bondy e Fanon falam da necessidade de criar um novo homem em relação ao homem moderno europeu, Zea pensa que tanto os europeus como nós latinos falamos do mesmo homem. Para Zea a filosofia da libertação é simplesmente um momento a mais dentro da tradição filosófica ocidental. Scannone, ao contrário, fala de uma “ruptura”, em relação à filosofia que se fez até então.
Depois desse Simpósio, a situação argentina endureceu: recomeçou a repressão política. Houve a matança de mais de 400 jovens em Ezeiza, quando do retorno de Perón à Argentina. A casa de Dussel foi objeto de um atentado a bomba pelos grupos de direita peronista.  Mas assim mesmo, no meio de uma luta política sem igual, se publicou muita coisa sobre “o problema da constituição de uma filosofia latino-americana” com a participação de grande número de filósofos argentinos.
Pouco depois, a situação política tornou-se insuportável. A direita peronista quer eliminar a esquerda. Todos os filósofos da filosofia da libertação foram expulsos de seus departamentos, sendo alguns seqüestrados e torturados. Houve até o assassinato do filósofo Maurício A. Lopes. Isso obrigou o exílio desses filósofos: alguns se esconderam no interior da Argentina (que tiveram que guardar silêncio até 1983), outros se exilaram em diferentes paises, como México, Venezuela, Canadá, Equador e Brasil.

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