Influência Capital do Pensamento Ético de Lévinas
Enrique Dussel nasceu em 1934 na Argentina e reside no México, para onde foi obrigado a exilar-se em 1974. No link citado você pode encontrar tudo sobre a vida e obra dele, inclusive, você pode ler digitalmente um grande número de seus livros e artigos.
Propomos o estudo da Ética e Política desse filósofo como representativo da filosofia da libertação, pelos seguintes motivos:
- É o autor que, desde 1968 e até hoje, se dedica de modo contínuo a esse movimento;
- Talvez seja o filósofo desse movimento que mais dialogou sobre a questão da filosofia da libertação não só com os pensadores do passado, mas igualmente com os principais filósofos da atualidade (entre outros, Karl-Otto Apel, Júrgen Habermas e Richard Rorty);
- Sua filosofia política e ética, enfim, tem sentido universal. Apesar de ou talvez exatamente por criticar fortemente o eurocentrismo, sua ética e política partem do pensamento do judeu lituano-francês Emmanuel Lévinas, que, por primeiro, criticou duramente a filosofia tradicional da cultura grega.
Lévinas pensa a partir de sua cultura judaica, o que lhe permite fazer severas críticas à ontologia Greco-europeia. Ele começa criticando a concepção de Ser da tradição ocidental, pois o conceito de ser engloba e reduz tudo o que existe ao ele; fora do ser não existe nada. Foi por esse motivo que as éticas tradicionais nunca reconheceram a alteridade do Outro. O Ser é todo poderoso e reduz tudo a ele, inclusive a alteridade do Outro. Mas, dessa forma, a metafísica tradicional dissolve aalteridade do Outro, o Outro desaparece nesse pensamento.
Mas a filosofia moderna coloca o Eu no lugar do Ser. O Eu moderno substitui o Ser tradicional e, por isso, como o Ser, também ele é todo poderoso. Fora dele não há nada. O Outro, assim, na tradição moderna, foi reduzido ao Eu. O máximo que o Eu pode fazer é reconhecer o Outro como semelhante a ele; mas o Outro não é semelhante ao EU. Eu e o Outro somos entes totalmente separados, não podendo ser assumidos por nenhum conceito. Por isso, segundo Lévinas, não há possibilidade de uma ética verdadeira, uma vez que o Outro – fundamento da ética - não pode ser reduzido ao Ser ou ao EU; está fora desses conceitos. Por isso, o Eu e o Ser devem ser destronados a fim de tornar possível uma ética verdadeira a partir da interpelação do outro.
O absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A coletividade em que eu digo “tu” ou “nós” não é um plural de “eu”. Eu, tu não são indivíduos de um conceito comum. Nem a posse nem a unidade do número, nem a unidade do conceito me ligam a outrem. Ausência de pátria comum que faz do Outro - o Estrangeiro; o Estrangeiro que o perturba em sua casa. Mas o Estrangeiro quer dizer também o livre. Sobre ele não posso dominar, porquanto escapa ao meu domínio num aspecto essencial, mesmo que eu disponha dele: é que ele não está inteiramente em meu lugar. Mas eu, que não tenho conceito comum com o Estrangeiro, sou, tal como ele, sem gênero. Somos o Mesmo e o Outro (LÉVINAS, 1990, p. 26).
Como Lévinas diz no texto, “somos o Mesmo e o Outro”. Somos o Mesmo enquanto ambos somos entes existentes, mas cada um diferentediante da alteridade do Outro. (Veja que na relação eu e João, João é outro para mim e eu sou outro para ele). Por isso, o que fazem as éticas tradicionais ocidentais é reduzir a dimensão “Outro” ao “Mesmo”. A dimensão da alteridade do Outro, sendo reduzida ao Mesmo, é englobada, assimilada e assim deixa de ser alteridade: o Outro enquanto outro não existe mais, pois foi reduzido ao Mesmo.
Por que o Outro nunca pode ser reduzido ao Ser ou ao Eu todo poderoso da modernidade? Porque são entes totalmente separados entre si. O Outro nunca se deixa compreender, pois seu rosto que me interpela se revela para mim como o infinito, isto é, como o transcendente que nunca pode ser compreendido a partir do Eu ou do Ser; ele escapa ao poderio do Ser e do Eu que querem tudo compreender, englobar e dominar. Não há nenhum conceito que possa englobar o eu e o outro, porque são entes essencialmente diferentes, São alteridades.
Por outro lado, o Ser e o Eu constituem a Totalidade do nosso mundo liberal-capitalista; fora dessa Totalidade (o termo o diz claramente) nada de realmente existente pode haver; o Outro enquanto outro está fora da Totalidade. E assim, nasce o seu conceito oposto: a Exterioridade. Essa última categoria é extremamente importante para a construção da ética e das políticas de Lévinas e Dussel. Fora da Totalidade do Primeiro Mundo (Europa, Estados Unidos e Japão), há apenas os Outros que são excluídos da Totalidade vigente. Assim, o conceito de Exterioridade permite a Lévinas pensar a alteridade do pobre, oprimido, viúva, órfão, estrangeiro e de todos os que estão fora do sistema totalitário e a Dussel permite pensar, sobretudo, as vítimas da violenta conquista colonialista europeia e os excluídos ou os que estão no exterior do sistema-mundo.
Mas é preciso prestar atenção, segundo Lévinas, pois:
Enquanto saber, o pensamento é o modelo pelo qual uma exterioridade se encontra no interior de uma consciência que não cessa de se identificar, sem ter de recorrer para tal a nenhum signo distintivo e é Eu: o Mesmo. O saber é uma relação do Mesmo com o outro em que o outro se reduz ao Mesmo e se despoja de sua alteridade em que o pensamento se refere ao outro, mas em que o outro já não é outro, em que ele já é o mesmo, já meu... (LÉVINAS, 1991, p. 14).
Segundo o autor, o pensar seria a adequação do saber ao ser que nos leva ao pensamento totalitário, que tudo abarca, não deixando nada de exterior a ele; o Outro é reduzido ao Eu, ao Mesmo. Assim, as éticas da filosofia ocidental - que sempre foram pensadas a partir do Eu e do Ser - não dão lugar para a exterioridade ou alteridade do Outro. Engolem o Outro, deixando aparecer apenas a dimensão do Mesmo.
Mas o Outro se revela na epifania do rosto. O rosto é um Enigma, segundo Lévinas. O rosto se manifesta sem se revelar completamente; é incompreensível como o infinito. Ele usa o termo epifania para expressar essa originalidade do rosto. Por isso, ele chamará essa revelação do Rosto, enquanto não é simplesmente um fenômeno, como Enigma. O que mais importa no rosto não é o aspecto empírico, mas a significação que dele emana.
Para o autor, o enigma é intervenção de um sentido que desarranja o fenômeno. Portanto, é um modo de significar que não é nem um desvelar-se nem um velar-se, escapando ao binômio do ‘ser ou não ser’. Não se torna cativo de minha consciência. O enigma é uma abertura ao transcendente. O face a face, o rosto envia uma mensagem que nos ultrapassa. Estamos fora das estruturas do ser e saber. Meu universo foi rompido, porque aconteceu uma nova ordem. O rosto do outro é uma presença misteriosa que está sempre em retirada.
Na epifania do rosto, entretanto, o Outro me interpela para que eu o aceite em sua nudez, como ele é. O apelo do outro aparece como um imperativo que não é presente e me acusa por meu atraso. Aqui o eu não tem escolha, não pode recusar a partir de sua liberdade. O sujeito se encontra investido, desde sempre, como único responsável pelo outro.
Como Caim, podemos perguntar por que somos responsáveis pelo Outro. Lévinas responderá repetindo as palavras de Dostoievski: “Todos somos culpados de tudo e de todos, e eu mais que todos os outros”. Sou responsável também por um mal que não cometi. “A identidade do sujeito mostra-se aqui, não por um repouso em si, mas por uma inquietude que me persegue fora do núcleo de minha substancialidade” (LÉVINAS, 1991, p. 181).
É preciso tirar o pão de minha boca para dá-lo ao outro. É nessa proximidade entre eu e o outro que se pode entender porque o rosto significa o Infinito: “O Infinito vem à idéia no significado do rosto. O rosto significa o Infinito”. (LÉVINAS, 1991, p. 161). E isso, segundo Lévinas, de tal forma que quanto mais eu for justo, tanto mais serei culpável. Como vemos, estamos longe da ética tradicional que é fundada no trono do Eu e na totalidade do ser.
Esses elementos da ética Lévinasiana vão inspirar a Filosofia da libertação de Enrique Dussel, da qual vamos estudar a seguir alguns pontos importantes das duas vertentes fundamentais: a ética e a política.
A Ética da Libertação de Enrique Dussel
Dussel é licenciado em Teologia (Paris), doutor em Filosofia (Madrid), doutor em História (Sorbonne), doutor honoris causa pelas universidades de Friburgo (Suíça) e de San Andrés de La Paz; presidente do Centro de Estudos Históricos Latino-Americanos (CEHILA); professor convidado por um semestre nas universidades de Frankfurt, Notre Dame, Califórnia State University (Chicago), Vanderbild, Duke, entre outras. Entre seus livros, podemos destacar: Para uma ética da libertação latino-americana(I-V tomos); Filosofia da libertação; Caminhos de libertação latino-americana; Uma década de sangue e esperança; Ética comunitária; Liberta o pobre!; Ética da libertação na idade da globalização e exclusão; El último Marx. Além de muitos livros sobre Marx ou sobre os confrontos de sua filosofia com o dos expoentes do pensamento contemporâneo. Também são muito conhecidos seus livros sobre a política e a teologia da libertação.
Os títulos dos livros citados já sinalizam a preocupação do autor com os pobres, desde o início, com os da América Latina e, aos poucos, pelas vítimas de todo o planeta. Diante do assustador crescimento dos excluídos, diante da perspectiva desesperadora das vítimas, que nos pedem pão e que nos interpelam para não matá-las, surge o imperativo de uma ética de libertação que, não seja apenas uma teoria, mas igualmente uma práxis, com vistas a todos terem direito não só a sobreviver, mas a viver bem e com dignidade.
Dussel foi discípulo de Heidegger, Paul Ricoeur e Lévinas. O pensamento de Dussel deve muito a todos esses pensadores; mas é a filosofia Lévinasiana da exterioridade que marca fundamentalmente sua ética da libertação. Marx também é interpretado pelo autor como sendo um pensador a partir da exclusão (os proletários marginalizados da sociedade hegemônica de seu tempo) e o influenciará decisivamente.
Partindo da exterioridade, o autor vai fazer uma crítica profunda contra o eurocentrismo do pensamento ocidental, que não permite ouvir a voz do excluído e reconhecê-lo como Outro, assimilando-o a seu sistema, violentando sua identidade. Nesse contexto, a filosofia hegemônica é consequência e instrumento desse pensamento do mundo como dominação. O filósofo africano Eboussi Boulagra também critica essa violência do pensamento europeu e norte-americano: “A filosofia é um dos símbolos e instituições que o Ocidente transportou para fora de si e a ofereceu como maneira de assimilar os outros” (apud DUSSEL, 2002, p. 76). A relação do dominador-dominado é assim expressa por Boulagra:
A oposição dominador-dominado repercute em todas as esferas, onde se repete a contradição dos que são em referência aos que não são, dos que têm sobre os que não têm. O vencido define-se por suas privações, que proclama como a superioridade do senhor. A filosofia entre muitas atividades e objetos aparece como alegoria do poder do vencedor (apud DUSSEL, 2002, p.74)
Parece urgente para nós, que queremos atuar no domínio da filosofia, repensar nosso conceito de filosofia e pensar a partir da exterioridade, fora do eurocentrismo dominador. Mas é possível esse pensamento a partir do pobre e da vítima? E se possível, como elaborar uma ética da libertação da vítima? Dussel, nos últimos anos, visando tornar sua ética crítica e factível, está em constante debate com os intelectuais e vítimas do mundo inteiro, discutindo, também, com os filósofos europeus e norte-americanos, mostrando os efeitos perversos do eurocentrismo.
Dois Tipos de Ética
Dussel faz uma pesquisa histórica das éticas nas culturas antigas, distinguindo duas vertentes diferentes. De um lado, temos o Egito africano-banto, os semitas do Oriente Médio e o mundo mesoamericano asteca e inca que valorizam a vida e a corporeidade, como algo muito positivo, de tal forma que se realiza a mumificação dos corpos no Egito e acredita-se na ressurreição da carne. Por isso, nascem normas éticas concretas, carnais, históricas, comunitárias. Assim, no Egito, entre outros, temos o texto, referente ao juízo final em que diante de Ka, a pessoa exclama:
Não cometi iniqüidade contra os homens... Não empobreci um pobre em seus bens... Não fiz padecer fome... Não acrescentei peso à medida da balança... Não roubei com violência... Não roubei pão... Satisfiz a Deus cumprindo o que ele desejava. Dei pão ao faminto, água ao sedento, veste ao que estava nu e uma barca ao náufrago... (apud Dussel, 2002, p. 27).
No prólogo do Código de Hammurabi, lê-se:
Naquele dia Anum e Enlil pronunciaram o meu nome... Hamurabi o príncipe piedoso, temente a deus, para fazer surgir justiça na terra, para eliminar o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco. (apud DUSSEL, 2002, p. 28)
Da cultura inca-quichua, temos:
Mesmo que fosse pobre ou miserável,mesmo que sua mão e seu pai fossem os pobres dos pobres...não se via sua linhagem,só se atendia a seu gênero de vida,à pureza de seu coração,a seu coração bom e humano, firme,dizia-se que tinha o divino em seu coração,que era sábio nas coisas divinas. (apud DUSSEL, 2002, p. 32).
De outro lado, temos a cultura do mundo “indo-europeu” do império chinês ao romano, incluindo a Índia e a Grécia, em que a vida é considerada negativamente. Aqui se incluem as visões do mundo tais como as dos hindus na Índia, persas no Irã, gregos e romanos no Mediterrâneo, budistas desde o Nepal, e, por influência indireta, taoístas e confucionistas na China. De modo geral, para essa cultura, o nascimento de alguém é a “queda” da alma por uma falta cometida antes do nascimento e a morte física como um verdadeiro “nascimento” para a verdadeira vida. A “libertação’’ é considerada exclusivamente como “libertação da alma” da prisão do corpo, da matéria, da pluralidade da dor, do “pecado original’’ (DUSSEL, 2002, p. 33). Basta citar dois autores (Mani e Plotino) para ver como, nessas culturas, se concebia negativamente a vida e o corpo Mani, o corpo participa do Princípio perverso:
Então Adão olhou em torno de si e chorou. Elevou sua voz poderosa como de um leão que ruge, arrancou os cabelos, bateu no peito e exclamou: malditos, malditos os que formaram meu corpo, os que acorrentaram minha alma; malditos os rebeldes que me escravizaram (apud DUSSEL, 2002, p. 35).
Plotino diz que o homem é essencialmente alma, por isso deve purificar-se de tudo o que é matéria e corpo:
A purificação consiste em isolar a alma, não a deixando se unir às coisas; não olhá-las mais; não ter mais opiniões estranhas à sua natureza (divina). Quanto à separação, (o êxtase) é o estado da alma que não se encontra mais no corpo, como a luz que não se encontra mais nas trevas (PLOTINO, 2000, ENÉADA II, 6,5).
O modo positivo de olhar para corporeidade e a vida (do Egito africano-bant, dos semitas do Oriente Médio – veja inclusive o sermão da montanha - e do mundo meso-americano asteca), de um lado, e o modo negativo (das culturas do mundo indo-europeu) de concebê-las, do outro, têm consequências bem diferentes em relação à ética.
Os que valorizam positivamente a vida, o corpo e o mundo sensível desenvolvem uma sensibilidade muito grande diante da dor do pobre, órfão, viúva, estrangeiro e excluído: ouvem seus gritos de dor e se sentem responsáveis por eles. Os que veem negativamente a vida, valorizando apenas o espiritual (a alma), não conseguem perceber a interpelação ética da vítima que têm fome, está nu, está submetido à escravidão física ou de dominação e colonização. Parece não ser casual que Aristóteles defenda que muitos entes humanos são, por natureza, escravos. Por esse motivo, Dussel abandona a via tradicional helenista de elaborar filosoficamente a ética e vai se inspirar nas normas éticas das culturas do Egito africano-bantu, dos semitas do Oriente Médio e do mundo meso-americano e inca e nos autores que continuaram essa linha de pensamento ético a partir da exterioridade da vítima, seguindo a linha de Marx e Lévinas.
A vida humana é a matéria ou o conteúdo da ética da libertação. A ética de Dussel não pode ser uma ética formal como as de Kant, Apel e Habermas; trata-se de uma ética material ou de conteúdo. Ele parte do fenômeno da globalização, que exclui, paradoxalmente, a maioria da humanidade. É um problema de vida ou morte. A matéria da ética da libertação é a vida humana, vida humana que não é um conceito, uma idéia, nem um horizonte abstrato, mas o modo real de existir de cada ser humano concreto: a vida é condição absoluta da ética e exigência de toda libertação. A totalidade do sistema-mundo não permite que a vida da maior parte da população se reproduza se desenvolva e alcance a dignidade mínima de existir como um ser humano com dignidade.
Não se deve estranhar, então, que essa Ética seja uma ética da afirmação total da vida humana ante o assassinato e o suicídio coletivo para os quais a humanidade se encaminha se não mudar seu agir irracional.
A Ética da libertação pretende pensar filosófico-racionalmente essa situação real e concreta, ética, da maioria da humanidade presente, próxima de um conflito trágico de proporções nunca vistas na história da espécie humana, filogeneticamente falando (DUSSEL, 2002, p. 11).
Exterioridade e Corporeidade
Essa ética, como a de Marx e Lévinas, parte da exterioridade da vítima. Isso significa que essa filosofia libertadora pensa partir dos que estão fora do Sistema-mundo: os excluídos da sociedade hegemônica. Aliás, esse é o método analético da filosofia da libertação de Dussel. Em vez de fazer um discurso a partir de dentro da totalidade do sistema vigente, sua filosofia parte de fora do sistema que exclui parte da exterioridade das vítimas excluídas. O logos não é mais o dos vencedores, mas o dos vencidos.
Do método analético só é possível falar a partir da exterioridade, fora do centro europeu e norte-americano. Esse conceito de exterioridade permite pensar a partir das primeiras vítimas da modernidade primitiva, os nativos da América (segundo Dussel a modernidade primitiva já começou em 1492, com a ‘descoberta’ dos Europeus da Ameríndia cujos nativos, foram brutalmente dominados e colonizados; e o ouro e a prata saqueados farão a riqueza de Portugal, Espanha e Inglaterra, país este último em que florescerá a primeira exploração capitalista dos proletários; a modernidade adulta ou madura começaria com Descartes).
Como já vimos na aula 4, os europeus dizimaram os indígenas de modo cruel, destruíram as culturas ameríndias para impor-lhes sua civilização cristã europeia. Os conquistadores europeus não respeitaram os nativos, não os reconheceram como outros; nem tão pouco como entes semelhantes com os mesmos direitos que eles. Dussel fala que 1492 foi o início da ocultação do outro, tanto que, mesmo estando na América, foram chamados de ‘índios’. Por tanto, os habitantes de nosso continente estão, desde o início, fora do sistema moderno europeu. Agora podemos compreender a importância do conceito de exterioridade. Até agora toda a nossa história era contada (e a filosofia pensada) a partir de dentro do Sistema hegemônico. Dessa forma, era impossível aos nossos nativos sair do ocultamento. Tratava-se sempre da visão idealizada dos vencedores. Agora vai aparecer a visão dos vencidos e se pode realmente falar a partir das culturas indígenas. Do modo de ser dos escravizados afro-asiáticos, da mulher dominada pelo machismo, das crianças abandonadas na rua e de todo e qualquer excluído ou vítima da sociedade hegemônica.
O conceito de exterioridade torna a vítima visível e encarnada num corpo. A corporeidade é um conceito complementar da exterioridade. Esse conceito de corporeidade, conforme visto, já vigia em várias éticas primitivas. Nelas o ser humano não era visto como alma, mas como corpo que tem espírito. Por acaso você já viu uma alma? É, pois, a corporeidade que tira o ser humano o esquecimento, tornando-o visível e concreto. Tanto eu como o Outro nos encontramos a partir do corpo de cada um. Vejo o pobre que me pede comida, ouço o explorado gritando de dor, o injustiçado que me pede justiça, a vítima que me pede que eu a aceite em sua nudez, tal como ela é. É no carpo que se desenvolve a sensibilidade que me possibilita a acolher o Outro em sua alteridade.
Assim, as noções de corporeidade e exterioridade permitem não apenas criticar o sistema hegemônico que exclui, tornando visível o que estava oculto: as vítimas e todos os estigmas que a sociedade hegemônica lhe impinge para diminuí-las e ocultá-las, mas, sobretudo, permite a elaboração de uma ética que tenha, a partir dos excluídos, estratégias e propostas concretas para transformar instituições, costumes, normas e tudo o que gera vítimas.
O texto que segue, falando do povo indígena (extraído da mensagem do Exército Zapatista de Libertação Nacional), mostra como da ‘não-consciência’ ou posição ingênua passa-se agora à consciência ético-crítica:
Os mais velhos dos velhos de nossos povos nos falaram palavras que vinham de muito longe, de quando nossas vidas não eram, de quando nossa voz era calada. E caminhava a verdade nas palavras dos mais velhos dos velhos de nosso povo. E aprendemos em suas palavras que a longa noite de dor de nossa gente vinha das mãos e das palavras dos poderosos, que nossa miséria era riqueza para uns quantos, que sobre Os mais velhos dos velhos de nossos povos nos falaram palavras que vinham de muito longe, de quando nossas vidas não eram, de quando nossa voz era calada. E caminhava a verdade nas palavras os ossos e o pó de nossos antepassados e de nossos filhos se construiu uma casa para os poderosos, e que nessa casa não podia entrar o nosso passo, e que a abundância de sua mesa se enchia com o vazio de nossos estômagos, e que seus luxos eram paridos por nossa pobreza, e que a força de seus tetos e paredes se levantava sobre a fragilidade de nossos corpos, e que a saúde que enchia seus espaços vinha da morte nossa, e que a sabedoria que ali vivia de nossa ignorância se nutria, que a paz que a cobria era guerra para a nossa gente (apud DUSSEL, 2002, pp. 313-314).
Esse texto, que fala da realidade indígena, descreve, mudando o que deve ser mudado, a situação de todos os excluídos. Tamanha crueldade humana torna necessária a crítica ética ao sistema estabelecido. E deve ser feita a partir da vítima, da negação da produção e reprodução da vida do ente humano; aprende-se que a abundância dos poderosos se estabelece na miséria dos excluídos.
A Organização das Nações Unidas (ONU) constatou a existência de dois bilhões de habitantes de nosso planeta que são desesperadamente pobres e que mais de um bilhão de pessoas vive diariamente com uma renda que não chega a 1 dólar. A ética da libertação assume o momento crítico dos grandes críticos como Feuerbach, Schopenhauer, Nietzsche, Horkheimer, Adorno, Marcuse e, particularmente, Freud, Marx e Lévinas, quando eles criticam aspectos da dominação da época e da razão moderna. Essa sociedade que produz vítimas é criticável por que não permite à grande maioria viver. E a critica sempre será necessária, pois, dados os limites do ser humano, toda sociedade, por mais perfeita que seja sempre produzirá vítimas.
Responsabilidade e Viabilidade da Ética
A Ética de libertação como a de Lévinas acentua a responsabilidade de todos nós a ouvir e acolher o apelo das vítimas e tomá-las a nosso cargo. Não há escolha para nós. A responsabilidade, como para Lévinas, é anterior à liberdade; desde sempre estou compromissado com as vítimas que me interpelam. E essa aceitação do Outro em sua total alteridade é completamente gratuita. Além disso, meu compromisso não é só reconhecer o Outro como vítima, mas, sobretudo ajudá-lo a transformar tudo o que o torna vítima e permitir que ela deixe de sê-lo e possa produzir, reproduzir e desenvolver a vida em abundância.
Mas, embora devamos ter esperança e utopia, nossos projetos elaborados, a partir e junto com as vítimas, devem ser factíveis. Isto é, devem ser algo bem planejado e que tenham real possibilidade de realizar-se, de acontecer técnico-eticamente, pela razão prático-material; em outras palavras, os projetos devem ser viáveis e sustentáveis. Assim, fica claro que a ética da libertação não é apenas um discurso como em geral são as outras, mas sim um discurso que transforma nossa sociedade.
Deixemos, por fim, que uma vítima fale, escutemos a palavra da índia guatemalteca, Rigoberta Menschú, prêmio Nobel da Paz de 1992:
Eu não sou dona de minha vida, decidi oferecê-la a uma causa. Podem me matar a qualquer momento, mas seja em uma tarefa em que sei que meu sangue não será algo inútil, mas será mais um exemplo para os companheiros. O mundo onde vivo é tão criminoso, tão sanguinário, que de um momento para outro me tira a vida. Por isso, como última alternativa só me resta a luta.... e eu sei e confio que o povo é o único capaz, somente as massas são capazes de transformar a sociedade. E não é mera teoria apenas (apud DUSSEL, 2002, p. 416).
Ela afirma que só as massas sofridas têm o poder de transformar a realidade. Dussel também acredita nisso. Mas o que temos nós intelectuais filósofos a ver com essa transformação visando a um mundo mais justo? Acabou a ilusão de que nossas teorias sejam capazes sozinhas de transformar o mundo. Os intelectuais devem denunciar as causas que criaram e continuam sustentando esse sistema de dominação e colonização que exclui, devem explicar aos vitimados as razões causais que levaram a eles se encontrarem na situação lamentável em que estão. Os pensadores devem apoiar os projetos das classes oprimidas, esclarecendo-os no que concerne à viabilidade técnico-ética e às consequências desses projetos de libertação, permanecendo e trabalhando ao lado deles de modo solidário. Em outras palavras, os intelectuais orgânicos devem estar ao lado desses movimentos, sem pretender conduzi-los.
Nenhum comentário:
Postar um comentário