quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Fornet Betancourt

Quais as as características do processo de filosofar que Fornet propõe.

Conceito Tradicional de Filosofia

Seria verdadeira filosofia unicamente a filosofia tradicional greco-europeia? Mas o que dizer do tradicional pensamento oriental de onde filósofos helenistas eneoplatônicos trouxeram muitos elementos importantes para suas próprias filosofias? E o mesmo vale para o pensamento africano que alguns dos filósofos gregos antigos frequentaram. E como fica a questão do pensamento ameríndio originário? Todos esses pensamentos deveriam desistir de ser chamados de filosofia. Por quê? Seriam apenas sabedorias? Tudo em filosofia é questionável e, por isso você será chamado a se posicionar a respeito.
Há uma opinião generalizada de filósofos ocidentais que defendem categoricamente: no sentido estrito, só o pensamento greco-europeu é filosofia; e, se falamos defilosofia do Oriente, da África ou da América Latina, isso só é possível se o termo for tomado num sentido amplo. Segundo essa concepção, só é considerada, no sentido estrito, filosofia a maneira grega de refletir. Os modos diferentes de pensar das outras grandes culturas, contudo - embora reconheçam que são pensamentos sérios e dignos de respeito e estudo – podem apenas ser chamado de Sabedorias, mas nunca de Filosofia. Nesse sentido, o posicionamento claro de Heidegger – no livro Que é isto, a Filosofia? - é bem sintomático:
A expressão por demais ouvida “filosofia ocidental européia” é na verdade uma tautologia. Por quê? A “filosofia” é grega em sua essência; grego significa aqui: a filosofia é no princípio tão essencialmente grega que, em sua pretensão de desenvolver-se, captou primeira e unicamente o mundo grego. [...] Dizer: a Filosofia é grega em sua essência não significa senão que: o Ocidente e a Europa, e apenas eles, são, no que há de mais interior em seu curso histórico, originariamente “filosóficos”. (HEIDDEGER, 1962, p. 33-34).
Não resta dúvida, só se pode aceitar como sendo verdadeira filosofia, segundo esses autores, quando o pensamento for elaborado dentro dos parâmetros da filosofia da Grécia e Europa. Mas, essa concepção da Filosofia, que não admite nenhum outro pensamento senão o greco-europeu como sendo autêntica Filosofia, há muito está sendo questionada, sobretudo por ser uma filosofia monológica, isto é, que admite um único logos (o logos tipicamente grego) para o pensamento filosófico. Há para eles um único modo de fazer filosofia; não admitem que possam haver outros tipos de racionalidade e que, assim, se pudesse fazer diferentes filosofias.

Questionadores do Conceito Tradicional

Mas, ultimamente, há muitos que contestam a posição que restringe o termo filosofia ao pensamento dos europeus. Entre os questionadores desse logos monológico, encontram-se muitos pensadores espalhados pelo mundo todo que defendem um logos plural e, assim, por consequência, advogam a existência de muitas filosofias no sentido estrito da palavra.
Esse novo posicionamento começa a ter mais defensores, na América Latina, a partir da década de 60, sobretudo por filósofos de língua espanhola. Entre o grande número de pensadores latino-americanos que não só criticam a concepção de uma única maneira de se fazer filosofia, mas que também propõem múltiplas racionalidades que podem fundar diferentes filosofias, sugerimos analisar, como exemplo marcante, o pensamento do cubano Raúl Fornet-Betancourt que, em lugar de uma única filosofia a partir de uma só cultura, explora a possibilidade de diversas filosofias a partir de diferentes culturas. Tentemos, pois, compreender esse pensamento que rejeita a concepção monológica de filosofia, propondo um novo conceito que permita, ao lado da grega, o surgimento de diferentes pensamentos filosóficos a partir de matrizes culturais múltiplas.

Proposta de Filosofia Intercultural na América Latina

Na realidade, Betancourt nos propõe uma filosofia intercultural, na América Latina. Ele observa, entretanto, ser necessário que se entenda - antes de qualquer outro passo - em que sentido são usados esses temos por ele – “filosofia”, “intercultural” e “América Latina”. Comecemos, pois, por compreender, primeiro, as conotações dadas por ele à palavra “filosofia”.
Mas o que entende ele por filosofia? Apesar de ser “filosofia” um termo de etimologia grega, diz ele:
... não vinculo a atividade humana, designada na Grécia com essa palavra, a nenhuma exclusividade do espírito grego ou da cultura grega. Vejo antes que essa atividade, que na Grécia recebeu esse nome, é uma potencialidade humana que pode ser, e de fato é, cultivada em todas as culturas da humanidade. Filosofia se dá sempre, por isso, em uma pluralidade de formas de pensar e de fazer. Não há, por tanto, razão alguma para tornar absoluta uma dessas formas e propagá-la como a única válida. Quem faz isso, cai em uma posição etnocêntrica que converte em centro do mundo o que, na realidade, não é mais que uma de suas regiões. Em lugar de tornar absoluta uma forma local de filosofia, preferimos liberar a atividade (filosófica) de toda definição definitiva a partir de uma só de suas origens culturais, e propor compreendê-la como uma atividade que nasce em muitos lugares e que pode ter, por conseguinte, muitas racionalidades (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 639).
A filosofia é plural e se faz a partir de um determinado contexto. A história da institucionalização acadêmica da Filosofia, em que foi reduzida a uma disciplina entre outras ou a um ramo dos conhecimentos acadêmicos, pode tornar não evidente o que propõe o filósofo cubano. A filosofia acadêmica pode se tornar prisioneira dessas concepções e práxis tradicionais que hegemonicamente tornam o filosofar um saber constituído e monológico, modelar, que impede toda confrontação prático-teórica com a experiência contextual, pondo, em seu lugar, a leitura de textos, que muitas vezes são vistos como escritos sagrados da tradição (que não é outra senão a da Grécia ou da Europa). Aliás, essa ideia de fazer filosofia a partir de um determinado contexto liberta-a de todo o peso da tradição opressora de uma disciplina acadêmica e abre a possibilidade para uma multiplicidade de diferentes formas de expressão.
Nessa concepção, a filosofia não é tanto estudo de textos, mas antes é um saber vivo e reflexivo a partir do contexto. Não se concebe mais a filosofia como mera teoria, mas como um saber da e sobre a realidade concreta. É, pois, um conhecimento articulado com os processos históricos e contraditórios, tendo-se consciência de que há muitas interpretações e que cada uma faz com que a realidade se apresente desta ou daquela forma.
... Trata-se de um saber de realidades o qual sabe intervir no curso da história, em nome daquilo que se negou como realidade possível. Pois a esperança, as memórias reprimidas, a utopia, são parte da realidade que podemos fazer (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 640).
Somos como você sabe poder-ser e o filósofo, como o artista, nega a realidade imediata para propor novos modos de viver nossa existência.
Estudemos, agora, o sentido especifico do termo interculturalidade, usado pelo autor. Certamente ele não quer reduzir esse conceito a sua dimensão estritamente racional, lógica ou “filosófica”, mas antes ao contexto prático de vida em que sempre há partilha da história e existência com os outros.
Assim, pode-se perceber que o termo em estudo nos coloca diante de uma concepção histórica de cultura, pois, no dizer de Fornet-Betancourt,
As culturas não caem do céu, mas vão crescendo em condições contextuais determinadas como processos abertos em cujo princípio se encontra já o trato e o comércio com o outro – seja com a natureza seja com as deusas ou deuses - e com os outros - seja com outra família do mesmo povo ou seja com os povos vizinhos. As culturas são processos em fronteira. E essa fronteira, como experiência básica de estar em contínuo trânsito, não é somente uma fronteira que demarca o território próprio, que traça o limite entre o próprio e o alheio como um limite que marcaria o fim do próprio e o começo do outro lado da fronteira. Não, essa fronteira se produz no interior mesmo do que chamamos nossa própria cultura. O outro está dentro e não fora de nossa cultura (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 640-641).
O autor dá três razões, para entender assim a fronteira do próprio e do estranho de toda cultura:
  1. Porque a cultura vai crescendo com e desde o outro, pois a cultura é um processo aberto de trato e contrato, de comércio com o outro;
  2. Numa sociedade de conflitos e lutas entre pobres e ricos, homens e mulheres e outras, aquilo que vai se cristalizando como “próprio”, nesse processo de entrar e sair, não é simplesmente nosso. Além disso, pode haver conflitos dentro de nossa própria cultura; e isso ou porque o poder hegemônico tenta reduzir todas as culturas a uma única ou porque as diversas culturas estão em conflito entre si para poder impor-se;
  3. Porque, considerando a experiência da América Latina em que as múltiplas culturas querem mostrar o que têm de próprio e dizer que, em sua nação, vive-se uma determinada cultura, isso, na realidade, oculta o fato da ideologia que sacraliza nomes como nação argentinanação brasileira e outras; na verdade, há mais redução à unidade que unidade verdadeira, nas chamadas culturas nacionais: em sua cara hegemônica, fazem silenciar o grito dos oprimidos.
Esse modo de interpretar nossa cultura, que herdamos como própria e sempre em relação com outras, deve ser visto a partir de sua concepção histórica.
O decisivo, porém, é compreender que essa visão histórica do próprio nos ajuda a explicitar os contextos de nossa região, as fronteiras de nossa localidade, isto é, não isolá-la e torná-la absoluta como algo único e exclusivo. (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 641).
Sempre se estende uma ponte até o outro lado, para nos incitar ao contato e diálogo com os outros.
Por último, passemos a examinar como o autor entende o termo América Latina. Esse nome é problemático, sobretudo quando ele é empregado com a pretensão de englobar, num único conceito padrão, toda a diversidade política, religiosa e cultural de um subcontinente.
Primeiro, interpretar a América Latina como um subcontinente culturalmente mestiço, tomado de modo universal, como certeza aplicável a toda a realidade cultural, política e religiosa do subcontinente, como faz o poder hegemônico, não é válido; segundo, a América latina não é só lugar de mestiçagem, mas também lugar de redução de todas as culturas à única hegemônica: por isso, esses “reduzidos” devem também ter seu lugar; terceiro, entender a América Latina a partir de suas culturas “reduzidas” é estudar a memória de seus povos e assim permitir um lugar para todas as culturas, também para as das minorias. No dizer de Betancourt,
Em resumo, guio-me pela visão (utópica) proposta por José Martí de uma América realmente nossa, construída com a participação de todos e com espaço específico não só para visões diferentes do mundo, mas também para a construção de mundos reais diversos: uma América na qual todas as diferenças podem ter sua casa (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 642).
Após termos examinado em que sentido o filósofo cubano usa os três termos acima estudados, podemos passar, agora, ao estudo das características da Filosofia intercultural na América Latina.

Da Necessidade da Interculturalidade na América Latina

Se quisermos descobrir a América em toda sua diversidade e especificidade, temos que ver na interculturalidade ou diálogo com as diversas culturas como uma tarefa urgente e necessária. O filósofo cubano insiste na necessidade dessa tarefa de diálogo entre culturas,
Porque não há outra alternativa para cancelar os hábitos e consequências do colonialismo, e deter desse modo a colonização da humanidade por parte da civilização hoje hegemônica (DUSSEL;MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 642).
A história da conquista e colonização da América Latina foi e continua sendo um processo violento de destruição e opressão sistemática das diferenças culturais. Com a invasão europeia se desmantela sua forma de vida social, religiosa e política. O diferente é ”reduzido” ao mesmo, à “única cultura válida”; o outro é um objeto colonizado e neutralizado: é submetido a um processo de ocidentalização que o condena a ser marginal.
Quando o autor insiste na necessidade do diálogo intercultural, ele está dizendo que isso é um imperativo ético que se torna claro nestas palavras:
Diante da catástrofe da opressão e da sujeição, do encobrimento e da exclusão das diferenças, o diálogo intercultural, como alternativa para reparar a injustiça cometida e encaminhar a história por caminhos de convivência solidária, apresenta, com efeito, a necessidade de uma opção ética imperativa; uma opção que não podemos rechaçar sem nos fazer cúmplices do sistema hegemônico vigente (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 643).
E esse diálogo necessário e ético tem que pautar-se pelos princípios da libertação e justiça, pois não há reparação sem libertação. Esse contato justo com o outro exige que se reconheçam esses povos como pessoas humanas com toda sua dignidade e seus direitos. Esse diálogo intercultural se apresenta, segundo o autor, com duas dimensões de obrigações normativas: a de reparar a culpa colonialista para com as vítimas e a de criar uma nova ordem, agora justa, que colabore para sua libertação.
Por isso, é fundamental que os povos indígenas, africanos e também os mestiços e outros excluídos da América entrem especificamente nesse diálogo intercultural, a fim de que se processe uma real partilha de valores e cultura entre todos, tanto os opressores como os oprimidos. E nós brancos, por não sermos indígenas, negros ou excluídos não podemos falar do ponto de vista desses povos; é preciso ouvir deles mesmos os pontos fundamentais de sua cultura. Só assim pode haver um real reconhecimento do outro em suas diferenças e o estabelecimento de uma nova ordem solidária que valorize as diferenças e o que é próprio de cada cultura. Só assim, percebendo a urgência do diálogo intercultural em que todos os parceiros participam ativamente, se torna possível “corrigir as estruturas atuais de poder e criar condições iguais para o desenvolvimento pleno de todas as culturas.” (apud DUSSEL, 2002, p. 643).

Da Necessidade de Transformar a Filosofia na América Latina a Partir do Desafio do Diálogo Intercultural

O autor propõe que, á medida que se estabelecerem relações novas e capazes de transformar a atual realidade, nossa filosofia também deve qualificar-se a partir das exigências desse intercâmbio cultural. Aliás, essa necessidade de relações interculturais para transformar as estruturas políticas, religiosas e culturais de nossos países injustos deve afetar também a filosofia, pois ela deve assumir-se como uma exigência ética de transformação. Isso deve implicar a passagem da concepção da filosofia hegemônica e monocultural para um conceito novo de filosofia, assentado na confrontação intercultaural, cujas proposições estão sempre expostas à crítica e ao contraste. Agora, no lugar de integrar o próprio de cada cultura no movimento universal, urge integrar a diversidade de mundos culturais no próprio de cada cultura.
Nesse sentido, é superado o conflito entre o universal e o particular, pois
os troncos próprios em cada cultura são universais concretos. Não há “particularidades” e “universalidades”, mas sim universalidades históricas. Dependerá, então, se essas universalidades se capacitam para o encontro solidário ou não (FORNET-BETANCOURT, 1994, p. 35).
Cada cultura, por tanto, é uma universalidade temporal contingente que, para sua sobrevivência, precisa do diálogo com as demais culturas. E a esse tronco, enquanto é uma universalidade concreta de vida e pensamento, se constitui como a referência primeira para filosofia dizer o próprio, a diferença e o particular. E ela o diz contrastando o próprio de sua cultura com o próprio das outras, com as quais interage.

Necessidade de Reaprender a Filosofar

Mas para quem está habituado a fazer filosofia dentro da tradição hegemônica, é preciso desenvolver um espírito forte de autocrítica, a fim de não continuar nas malhas do pensamento hegemônico. É preciso aprender tudo de novo. É necessária uma nova atitude filosófica, urge um metódico exercício de aprendizagem para abandonar os vícios do pensamento monológico e passar a pensar a partir das múltiplas e diferentes racionalidades encarnadas e concretizadas nas diversas culturas sobre as quais acontece o debate filósofo.
Dessa forma, estamos diante de um novo tipo de racionalidade filosófica. A filosofia também é histórica, sempre nasce (também a grega) dentro de uma determinada cultura e, por isso, como esta, deve nutrir-se do diálogo intercultural. Mas a filosofia que se enraíza numa cultura determinada, corre vários riscos, entre os quais,
O perigo de ocultar a diferença cultural sob o manto opressor de uma universalidade decretada monologicamente [...] A filosofia despede-se desse tipo de universalidade que o Ocidente tem decretado, entendendo que essa universalidade responde, no fundo, a um movimento de extrapolação de uma cultura regional. Por isso, a filosofia intercultural prefere orientar-se na ideia reguladora de uma “universalidade” conseguida como pluri-versidade crescente a partir da solidariedade. [...] terá necessariamente que ter pela frente a tarefa de traçar de novo o mapamundi da Filosofia para que este não seja visto somente como um território colonizado pelo Ocidente, senão que contemple realmente a variedade de tradições que o compõe (FORNET-BETANCOURT, 1994, p. 38-39).
Mas é preciso não esquecer que nosso novo conceito de filosofia produz um pensamento filosófico tão contingente quanto o das outras filosofias. Por isso, segundo Betancourt, ela é sempre é apenas uma hipótese, uma proposição aberta à crítica de todos. Toda proposição filosófica é sempre uma proposta criticável, que espera contestação a fim de poder se tornar menos preconceituosa, menos particular, mais crítica e mais próxima da verdade. Pela mesma razão, a nova filosofia deve ser radicalmente autocrítica, pois o que se exige de nós - nessa passagem da filosofia de um único modo de racionalidade para uma filosofia que pressupõe vários tipos de logos - é uma tarefa que o autor chama de “desfilosofar a filosofia”. O que ele entende por essa tarefa? O que ele propõe em concreto com isso?

“Des-filosofar” a Filosofia

“Des-filosfar” a filosofia, segundo ele, significa, primeiro, tirar a filosofia do cárcere da ainda vigente tradição ocidental européia. E isso acarreta não apenas o desfazer-se do pensamento monológico europeu, mas também libertar a filosofia dos limites impostos pelas regras da filosofia acadêmica, pois a institucionalização acadêmica fez com que a filosofia fosse reduzida a uma disciplina.
E isso com o agravante de que, ao ser uma ”disciplina”, articulada em seus conteúdos a partir da tradição hegemônica centro-européia e integrada ademais com uma função específica aos interesses das metas formativas do sistema da modernidade européia e do capitalismo, a filosofia como “disciplina” não só fica configurada desde a tradição do saber dominante, mas também se sujeita à disciplina do sistema em geral. Como “disciplina”, a filosofia tem que observar as regras do jogo, as leis, de uma tradição científico-cultural assim como de todo um sistema de educação, que está, por sua vez, ligado a um sistema social, político e econômico. [...] Advogar por uma filosofia desdiciplinada é advogar por uma filosofia que, para seguir com a metáfora do cárcere, se faz fora desse terreno onde ela está submetida à observância das leis impostas pelo carcereiro (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 644).
Assim desfilosofar a filosofia, em segundo lugar, quer dizer romper com o preconceito de que a filosofia seria uma herança da cultura ocidental, mostrando a incoerência da filosofia monocultural; não existe uma filosofia abstrata e a-histórica: a própria filosofia greco-europeia só foi possível a partir de sua cultura em contato com outras. Assim, deve-se reconhecer a existência de muitas filosofias a partir das diferentes matrizes culturais.
No terceiro momento, na visão de Betancourt, há a tarefa de libertar a filosofia da
... tendência de ocupar-se consigo mesmo, com sua história, com seus textos; e ser só filosofia da filosofia. Em qualquer cultura da filosofia – pois essa tendência não é privativa da tradição hegemônica – haverá que trabalhar por uma filosofia que sabe que seu passado não consiste só em textos, mas também na contextualidade e na história das quais esses textos são produtos de reflexão e por isso sabe bem que é uma perversão de seu próprio passado reduzi-lo a “bibliografia” para exercícios acadêmicos (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 644).
No quarto momento, nesse trabalho de desconstruir a filosofia, é preciso fazer ainda que a filosofia se torne realmente presente nos espaços públicos das comunidades e culturas onde ela atua.
Será, pois, uma filosofia que reflexione sobre os assuntos públicos e que saiba falar sobre eles publicamente, contribuindo dessa maneira na formação de um espaço alternativo de opinião pública (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 644)
O quinto momento de desfilosofar o pensamento filosófico trata de reconstruir a filosofia, a partir do mundo, chamado pelo autor, “mundo da sabedoria popular”, ampliando nossos métodos e acervo de fontes com vistas à elaboração de novas interpretações sobre a realidade e a vida. Isso significa abrir a filosofia para escutar também as tradições das culturas indígenas, africanas e de todos os oprimidos ou excluídos. O filósofo deve aprender a escutar a palavra dos próprios membros dessas culturas se quiser realmente pôr à prova o novo conceito de filosofia latino-americana. Segundo o autor, devemos transformar esse pensamento filosófico, a fim de tornar-se “uma filosofia que seja a casa em que todos os povos e culturas do continente possam articular livremente sua memória e sua palavra de sujeitos viventes” (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 645)

Da Utilidade Prática de uma Filosofia Interculturalmente Transformada

Essa transformação da filosofia não é uma questão teórica para deleite de alguns de seus profissionais, mas traz graves consequências – como já vimos anteriormente - para a atividade filosófica que deve ser posta a serviço do bem social e cultural de pessoas humanas. Um primeiro aspecto prático de uma filosofia transformada pelas relações interculturais consiste em fazer ver que as diferenças culturais e suas formas de vida não ameaçam a humanidade. Pelo contrário, o cultivo delas é a melhor forma de valorizar a vida e a existência: é uma práxis cultural e política que sabe que essas diferenças só ameaçam a ordem hegemônica que pretende vestir todos os homens com o mesmo uniforme. Assim, não devem ser extintas as diferenças culturais, mas, pelo contrário, potencializadas a partir de si mesmas e do intercâmbio entre elas.
Outro aspecto prático de uma filosofia interculturalmente transformada é o exercício, baseado nas exigências da tolerância e pluralismo, que permite o direito de os povos dizerem não apenas como percebem, de modo distinto, o mundo, mas principalmente que permita-lhes construírem o mundo desde suas diferentes visões. Por último, segundo o autor, essa filosofia transformada pelas relações interculturais tem a utilidade prática de contribuir na busca de alternativas concretas à globalização neoliberal (que é a globalização de uma forma particular de vida, economia, cultura, democracia e outros modos de uniformização), alternativas que podem criar uma sociedade baseada, não mais em relações de competição e dominação, mas na solidariedade entre culturas que se comunicam sem perder o que cada uma tem de mais próprio. Isso tudo faz parte do novo conceito de filosofia.
Em conclusão, Fornet-Betancourt apresenta um novo conceito de Filosofia. Em lugar de uma filosofia que defende um único logos, ele propõe múltiplas filosofias, a partir das diferentes racionalidades enraizadas nas diversas matrizes culturais. Toda filosofia nasce a partir de uma determinada cultura, inclusive a filosofia europeia. Mas se a filosofia pensa a partir de um contexto cultural bem definido e a racionalidade de cada cultura está carregada de preconceitos e não verdades, então ela só se constitui como verdadeiro pensamento filosófico se houver o confronto intercultural. O diálogo entre as diversas culturas é essencial para tornar nosso filosofar menos preconceituoso e arrogante, mais crítico, mais sensível e respeitoso em relação às múltiplas formas de racionalidade e, talvez, mais próximo da verdade. E se esse novo conceito de filosofia for aceito, então há filosofia na América Latina, na Europa, na Ásia tanto quanto nos Estados Unidos e na Europa.

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