Dicionário de Filosofia da Libertação Latino Americana
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
Fornet Betancourt
Quais
as as características do processo de filosofar que Fornet propõe.
Conceito Tradicional de Filosofia
Seria verdadeira filosofia unicamente a filosofia tradicional greco-europeia? Mas o que dizer do tradicional pensamento oriental de onde filósofos helenistas eneoplatônicos trouxeram muitos elementos importantes para suas próprias filosofias? E o mesmo vale para o pensamento africano que alguns dos filósofos gregos antigos frequentaram. E como fica a questão do pensamento ameríndio originário? Todos esses pensamentos deveriam desistir de ser chamados de filosofia. Por quê? Seriam apenas sabedorias? Tudo em filosofia é questionável e, por isso você será chamado a se posicionar a respeito.
Há uma opinião generalizada de filósofos ocidentais que defendem categoricamente: no sentido estrito, só o pensamento greco-europeu é filosofia; e, se falamos defilosofia do Oriente, da África ou da América Latina, isso só é possível se o termo for tomado num sentido amplo. Segundo essa concepção, só é considerada, no sentido estrito, filosofia a maneira grega de refletir. Os modos diferentes de pensar das outras grandes culturas, contudo - embora reconheçam que são pensamentos sérios e dignos de respeito e estudo – podem apenas ser chamado de Sabedorias, mas nunca de Filosofia. Nesse sentido, o posicionamento claro de Heidegger – no livro Que é isto, a Filosofia? - é bem sintomático:
A expressão por demais ouvida “filosofia ocidental européia” é na verdade uma tautologia. Por quê? A “filosofia” é grega em sua essência; grego significa aqui: a filosofia é no princípio tão essencialmente grega que, em sua pretensão de desenvolver-se, captou primeira e unicamente o mundo grego. [...] Dizer: a Filosofia é grega em sua essência não significa senão que: o Ocidente e a Europa, e apenas eles, são, no que há de mais interior em seu curso histórico, originariamente “filosóficos”. (HEIDDEGER, 1962, p. 33-34).
Não resta dúvida, só se pode aceitar como sendo verdadeira filosofia, segundo esses autores, quando o pensamento for elaborado dentro dos parâmetros da filosofia da Grécia e Europa. Mas, essa concepção da Filosofia, que não admite nenhum outro pensamento senão o greco-europeu como sendo autêntica Filosofia, há muito está sendo questionada, sobretudo por ser uma filosofia monológica, isto é, que admite um único logos (o logos tipicamente grego) para o pensamento filosófico. Há para eles um único modo de fazer filosofia; não admitem que possam haver outros tipos de racionalidade e que, assim, se pudesse fazer diferentes filosofias.
Questionadores do Conceito Tradicional
Mas, ultimamente, há muitos que contestam a posição que restringe o termo filosofia ao pensamento dos europeus. Entre os questionadores desse logos monológico, encontram-se muitos pensadores espalhados pelo mundo todo que defendem um logos plural e, assim, por consequência, advogam a existência de muitas filosofias no sentido estrito da palavra.
Esse novo posicionamento começa a ter mais defensores, na América Latina, a partir da década de 60, sobretudo por filósofos de língua espanhola. Entre o grande número de pensadores latino-americanos que não só criticam a concepção de uma única maneira de se fazer filosofia, mas que também propõem múltiplas racionalidades que podem fundar diferentes filosofias, sugerimos analisar, como exemplo marcante, o pensamento do cubano Raúl Fornet-Betancourt que, em lugar de uma única filosofia a partir de uma só cultura, explora a possibilidade de diversas filosofias a partir de diferentes culturas. Tentemos, pois, compreender esse pensamento que rejeita a concepção monológica de filosofia, propondo um novo conceito que permita, ao lado da grega, o surgimento de diferentes pensamentos filosóficos a partir de matrizes culturais múltiplas.
Proposta de Filosofia Intercultural na América Latina
Na realidade, Betancourt nos propõe uma filosofia intercultural, na América Latina. Ele observa, entretanto, ser necessário que se entenda - antes de qualquer outro passo - em que sentido são usados esses temos por ele – “filosofia”, “intercultural” e “América Latina”. Comecemos, pois, por compreender, primeiro, as conotações dadas por ele à palavra “filosofia”.
Mas o que entende ele por filosofia? Apesar de ser “filosofia” um termo de etimologia grega, diz ele:
... não vinculo a atividade humana, designada na Grécia com essa palavra, a nenhuma exclusividade do espírito grego ou da cultura grega. Vejo antes que essa atividade, que na Grécia recebeu esse nome, é uma potencialidade humana que pode ser, e de fato é, cultivada em todas as culturas da humanidade. Filosofia se dá sempre, por isso, em uma pluralidade de formas de pensar e de fazer. Não há, por tanto, razão alguma para tornar absoluta uma dessas formas e propagá-la como a única válida. Quem faz isso, cai em uma posição etnocêntrica que converte em centro do mundo o que, na realidade, não é mais que uma de suas regiões. Em lugar de tornar absoluta uma forma local de filosofia, preferimos liberar a atividade (filosófica) de toda definição definitiva a partir de uma só de suas origens culturais, e propor compreendê-la como uma atividade que nasce em muitos lugares e que pode ter, por conseguinte, muitas racionalidades (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 639).
A filosofia é plural e se faz a partir de um determinado contexto. A história da institucionalização acadêmica da Filosofia, em que foi reduzida a uma disciplina entre outras ou a um ramo dos conhecimentos acadêmicos, pode tornar não evidente o que propõe o filósofo cubano. A filosofia acadêmica pode se tornar prisioneira dessas concepções e práxis tradicionais que hegemonicamente tornam o filosofar um saber constituído e monológico, modelar, que impede toda confrontação prático-teórica com a experiência contextual, pondo, em seu lugar, a leitura de textos, que muitas vezes são vistos como escritos sagrados da tradição (que não é outra senão a da Grécia ou da Europa). Aliás, essa ideia de fazer filosofia a partir de um determinado contexto liberta-a de todo o peso da tradição opressora de uma disciplina acadêmica e abre a possibilidade para uma multiplicidade de diferentes formas de expressão.
Nessa concepção, a filosofia não é tanto estudo de textos, mas antes é um saber vivo e reflexivo a partir do contexto. Não se concebe mais a filosofia como mera teoria, mas como um saber da e sobre a realidade concreta. É, pois, um conhecimento articulado com os processos históricos e contraditórios, tendo-se consciência de que há muitas interpretações e que cada uma faz com que a realidade se apresente desta ou daquela forma.
... Trata-se de um saber de realidades o qual sabe intervir no curso da história, em nome daquilo que se negou como realidade possível. Pois a esperança, as memórias reprimidas, a utopia, são parte da realidade que podemos fazer (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 640).
Somos como você sabe poder-ser e o filósofo, como o artista, nega a realidade imediata para propor novos modos de viver nossa existência.
Estudemos, agora, o sentido especifico do termo interculturalidade, usado pelo autor. Certamente ele não quer reduzir esse conceito a sua dimensão estritamente racional, lógica ou “filosófica”, mas antes ao contexto prático de vida em que sempre há partilha da história e existência com os outros.
Assim, pode-se perceber que o termo em estudo nos coloca diante de uma concepção histórica de cultura, pois, no dizer de Fornet-Betancourt,
As culturas não caem do céu, mas vão crescendo em condições contextuais determinadas como processos abertos em cujo princípio se encontra já o trato e o comércio com o outro – seja com a natureza seja com as deusas ou deuses - e com os outros - seja com outra família do mesmo povo ou seja com os povos vizinhos. As culturas são processos em fronteira. E essa fronteira, como experiência básica de estar em contínuo trânsito, não é somente uma fronteira que demarca o território próprio, que traça o limite entre o próprio e o alheio como um limite que marcaria o fim do próprio e o começo do outro lado da fronteira. Não, essa fronteira se produz no interior mesmo do que chamamos nossa própria cultura. O outro está dentro e não fora de nossa cultura (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 640-641).
O autor dá três razões, para entender assim a fronteira do próprio e do estranho de toda cultura:
- Porque a cultura vai crescendo com e desde o outro, pois a cultura é um processo aberto de trato e contrato, de comércio com o outro;
- Numa sociedade de conflitos e lutas entre pobres e ricos, homens e mulheres e outras, aquilo que vai se cristalizando como “próprio”, nesse processo de entrar e sair, não é simplesmente nosso. Além disso, pode haver conflitos dentro de nossa própria cultura; e isso ou porque o poder hegemônico tenta reduzir todas as culturas a uma única ou porque as diversas culturas estão em conflito entre si para poder impor-se;
- Porque, considerando a experiência da América Latina em que as múltiplas culturas querem mostrar o que têm de próprio e dizer que, em sua nação, vive-se uma determinada cultura, isso, na realidade, oculta o fato da ideologia que sacraliza nomes como nação argentina, nação brasileira e outras; na verdade, há mais redução à unidade que unidade verdadeira, nas chamadas culturas nacionais: em sua cara hegemônica, fazem silenciar o grito dos oprimidos.
Esse modo de interpretar nossa cultura, que herdamos como própria e sempre em relação com outras, deve ser visto a partir de sua concepção histórica.
O decisivo, porém, é compreender que essa visão histórica do próprio nos ajuda a explicitar os contextos de nossa região, as fronteiras de nossa localidade, isto é, não isolá-la e torná-la absoluta como algo único e exclusivo. (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 641).
Sempre se estende uma ponte até o outro lado, para nos incitar ao contato e diálogo com os outros.
Por último, passemos a examinar como o autor entende o termo América Latina. Esse nome é problemático, sobretudo quando ele é empregado com a pretensão de englobar, num único conceito padrão, toda a diversidade política, religiosa e cultural de um subcontinente.
Primeiro, interpretar a América Latina como um subcontinente culturalmente mestiço, tomado de modo universal, como certeza aplicável a toda a realidade cultural, política e religiosa do subcontinente, como faz o poder hegemônico, não é válido; segundo, a América latina não é só lugar de mestiçagem, mas também lugar de redução de todas as culturas à única hegemônica: por isso, esses “reduzidos” devem também ter seu lugar; terceiro, entender a América Latina a partir de suas culturas “reduzidas” é estudar a memória de seus povos e assim permitir um lugar para todas as culturas, também para as das minorias. No dizer de Betancourt,
Em resumo, guio-me pela visão (utópica) proposta por José Martí de uma América realmente nossa, construída com a participação de todos e com espaço específico não só para visões diferentes do mundo, mas também para a construção de mundos reais diversos: uma América na qual todas as diferenças podem ter sua casa (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 642).
Após termos examinado em que sentido o filósofo cubano usa os três termos acima estudados, podemos passar, agora, ao estudo das características da Filosofia intercultural na América Latina.
Da Necessidade da Interculturalidade na América Latina
Se quisermos descobrir a América em toda sua diversidade e especificidade, temos que ver na interculturalidade ou diálogo com as diversas culturas como uma tarefa urgente e necessária. O filósofo cubano insiste na necessidade dessa tarefa de diálogo entre culturas,
Porque não há outra alternativa para cancelar os hábitos e consequências do colonialismo, e deter desse modo a colonização da humanidade por parte da civilização hoje hegemônica (DUSSEL;MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 642).
A história da conquista e colonização da América Latina foi e continua sendo um processo violento de destruição e opressão sistemática das diferenças culturais. Com a invasão europeia se desmantela sua forma de vida social, religiosa e política. O diferente é ”reduzido” ao mesmo, à “única cultura válida”; o outro é um objeto colonizado e neutralizado: é submetido a um processo de ocidentalização que o condena a ser marginal.
Quando o autor insiste na necessidade do diálogo intercultural, ele está dizendo que isso é um imperativo ético que se torna claro nestas palavras:
Diante da catástrofe da opressão e da sujeição, do encobrimento e da exclusão das diferenças, o diálogo intercultural, como alternativa para reparar a injustiça cometida e encaminhar a história por caminhos de convivência solidária, apresenta, com efeito, a necessidade de uma opção ética imperativa; uma opção que não podemos rechaçar sem nos fazer cúmplices do sistema hegemônico vigente (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 643).
E esse diálogo necessário e ético tem que pautar-se pelos princípios da libertação e justiça, pois não há reparação sem libertação. Esse contato justo com o outro exige que se reconheçam esses povos como pessoas humanas com toda sua dignidade e seus direitos. Esse diálogo intercultural se apresenta, segundo o autor, com duas dimensões de obrigações normativas: a de reparar a culpa colonialista para com as vítimas e a de criar uma nova ordem, agora justa, que colabore para sua libertação.
Por isso, é fundamental que os povos indígenas, africanos e também os mestiços e outros excluídos da América entrem especificamente nesse diálogo intercultural, a fim de que se processe uma real partilha de valores e cultura entre todos, tanto os opressores como os oprimidos. E nós brancos, por não sermos indígenas, negros ou excluídos não podemos falar do ponto de vista desses povos; é preciso ouvir deles mesmos os pontos fundamentais de sua cultura. Só assim pode haver um real reconhecimento do outro em suas diferenças e o estabelecimento de uma nova ordem solidária que valorize as diferenças e o que é próprio de cada cultura. Só assim, percebendo a urgência do diálogo intercultural em que todos os parceiros participam ativamente, se torna possível “corrigir as estruturas atuais de poder e criar condições iguais para o desenvolvimento pleno de todas as culturas.” (apud DUSSEL, 2002, p. 643).
Da Necessidade de Transformar a Filosofia na América Latina a Partir do Desafio do Diálogo Intercultural
O autor propõe que, á medida que se estabelecerem relações novas e capazes de transformar a atual realidade, nossa filosofia também deve qualificar-se a partir das exigências desse intercâmbio cultural. Aliás, essa necessidade de relações interculturais para transformar as estruturas políticas, religiosas e culturais de nossos países injustos deve afetar também a filosofia, pois ela deve assumir-se como uma exigência ética de transformação. Isso deve implicar a passagem da concepção da filosofia hegemônica e monocultural para um conceito novo de filosofia, assentado na confrontação intercultaural, cujas proposições estão sempre expostas à crítica e ao contraste. Agora, no lugar de integrar o próprio de cada cultura no movimento universal, urge integrar a diversidade de mundos culturais no próprio de cada cultura.
Nesse sentido, é superado o conflito entre o universal e o particular, pois
os troncos próprios em cada cultura são universais concretos. Não há “particularidades” e “universalidades”, mas sim universalidades históricas. Dependerá, então, se essas universalidades se capacitam para o encontro solidário ou não (FORNET-BETANCOURT, 1994, p. 35).
Cada cultura, por tanto, é uma universalidade temporal contingente que, para sua sobrevivência, precisa do diálogo com as demais culturas. E a esse tronco, enquanto é uma universalidade concreta de vida e pensamento, se constitui como a referência primeira para filosofia dizer o próprio, a diferença e o particular. E ela o diz contrastando o próprio de sua cultura com o próprio das outras, com as quais interage.
Necessidade de Reaprender a Filosofar
Mas para quem está habituado a fazer filosofia dentro da tradição hegemônica, é preciso desenvolver um espírito forte de autocrítica, a fim de não continuar nas malhas do pensamento hegemônico. É preciso aprender tudo de novo. É necessária uma nova atitude filosófica, urge um metódico exercício de aprendizagem para abandonar os vícios do pensamento monológico e passar a pensar a partir das múltiplas e diferentes racionalidades encarnadas e concretizadas nas diversas culturas sobre as quais acontece o debate filósofo.
Dessa forma, estamos diante de um novo tipo de racionalidade filosófica. A filosofia também é histórica, sempre nasce (também a grega) dentro de uma determinada cultura e, por isso, como esta, deve nutrir-se do diálogo intercultural. Mas a filosofia que se enraíza numa cultura determinada, corre vários riscos, entre os quais,
O perigo de ocultar a diferença cultural sob o manto opressor de uma universalidade decretada monologicamente [...] A filosofia despede-se desse tipo de universalidade que o Ocidente tem decretado, entendendo que essa universalidade responde, no fundo, a um movimento de extrapolação de uma cultura regional. Por isso, a filosofia intercultural prefere orientar-se na ideia reguladora de uma “universalidade” conseguida como pluri-versidade crescente a partir da solidariedade. [...] terá necessariamente que ter pela frente a tarefa de traçar de novo o mapamundi da Filosofia para que este não seja visto somente como um território colonizado pelo Ocidente, senão que contemple realmente a variedade de tradições que o compõe (FORNET-BETANCOURT, 1994, p. 38-39).
Mas é preciso não esquecer que nosso novo conceito de filosofia produz um pensamento filosófico tão contingente quanto o das outras filosofias. Por isso, segundo Betancourt, ela é sempre é apenas uma hipótese, uma proposição aberta à crítica de todos. Toda proposição filosófica é sempre uma proposta criticável, que espera contestação a fim de poder se tornar menos preconceituosa, menos particular, mais crítica e mais próxima da verdade. Pela mesma razão, a nova filosofia deve ser radicalmente autocrítica, pois o que se exige de nós - nessa passagem da filosofia de um único modo de racionalidade para uma filosofia que pressupõe vários tipos de logos - é uma tarefa que o autor chama de “desfilosofar a filosofia”. O que ele entende por essa tarefa? O que ele propõe em concreto com isso?
“Des-filosofar” a Filosofia
“Des-filosfar” a filosofia, segundo ele, significa, primeiro, tirar a filosofia do cárcere da ainda vigente tradição ocidental européia. E isso acarreta não apenas o desfazer-se do pensamento monológico europeu, mas também libertar a filosofia dos limites impostos pelas regras da filosofia acadêmica, pois a institucionalização acadêmica fez com que a filosofia fosse reduzida a uma disciplina.
E isso com o agravante de que, ao ser uma ”disciplina”, articulada em seus conteúdos a partir da tradição hegemônica centro-européia e integrada ademais com uma função específica aos interesses das metas formativas do sistema da modernidade européia e do capitalismo, a filosofia como “disciplina” não só fica configurada desde a tradição do saber dominante, mas também se sujeita à disciplina do sistema em geral. Como “disciplina”, a filosofia tem que observar as regras do jogo, as leis, de uma tradição científico-cultural assim como de todo um sistema de educação, que está, por sua vez, ligado a um sistema social, político e econômico. [...] Advogar por uma filosofia desdiciplinada é advogar por uma filosofia que, para seguir com a metáfora do cárcere, se faz fora desse terreno onde ela está submetida à observância das leis impostas pelo carcereiro (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 644).
Assim desfilosofar a filosofia, em segundo lugar, quer dizer romper com o preconceito de que a filosofia seria uma herança da cultura ocidental, mostrando a incoerência da filosofia monocultural; não existe uma filosofia abstrata e a-histórica: a própria filosofia greco-europeia só foi possível a partir de sua cultura em contato com outras. Assim, deve-se reconhecer a existência de muitas filosofias a partir das diferentes matrizes culturais.
No terceiro momento, na visão de Betancourt, há a tarefa de libertar a filosofia da
... tendência de ocupar-se consigo mesmo, com sua história, com seus textos; e ser só filosofia da filosofia. Em qualquer cultura da filosofia – pois essa tendência não é privativa da tradição hegemônica – haverá que trabalhar por uma filosofia que sabe que seu passado não consiste só em textos, mas também na contextualidade e na história das quais esses textos são produtos de reflexão e por isso sabe bem que é uma perversão de seu próprio passado reduzi-lo a “bibliografia” para exercícios acadêmicos (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 644).
No quarto momento, nesse trabalho de desconstruir a filosofia, é preciso fazer ainda que a filosofia se torne realmente presente nos espaços públicos das comunidades e culturas onde ela atua.
Será, pois, uma filosofia que reflexione sobre os assuntos públicos e que saiba falar sobre eles publicamente, contribuindo dessa maneira na formação de um espaço alternativo de opinião pública (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 644)
O quinto momento de desfilosofar o pensamento filosófico trata de reconstruir a filosofia, a partir do mundo, chamado pelo autor, “mundo da sabedoria popular”, ampliando nossos métodos e acervo de fontes com vistas à elaboração de novas interpretações sobre a realidade e a vida. Isso significa abrir a filosofia para escutar também as tradições das culturas indígenas, africanas e de todos os oprimidos ou excluídos. O filósofo deve aprender a escutar a palavra dos próprios membros dessas culturas se quiser realmente pôr à prova o novo conceito de filosofia latino-americana. Segundo o autor, devemos transformar esse pensamento filosófico, a fim de tornar-se “uma filosofia que seja a casa em que todos os povos e culturas do continente possam articular livremente sua memória e sua palavra de sujeitos viventes” (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 645)
Da Utilidade Prática de uma Filosofia Interculturalmente Transformada
Essa transformação da filosofia não é uma questão teórica para deleite de alguns de seus profissionais, mas traz graves consequências – como já vimos anteriormente - para a atividade filosófica que deve ser posta a serviço do bem social e cultural de pessoas humanas. Um primeiro aspecto prático de uma filosofia transformada pelas relações interculturais consiste em fazer ver que as diferenças culturais e suas formas de vida não ameaçam a humanidade. Pelo contrário, o cultivo delas é a melhor forma de valorizar a vida e a existência: é uma práxis cultural e política que sabe que essas diferenças só ameaçam a ordem hegemônica que pretende vestir todos os homens com o mesmo uniforme. Assim, não devem ser extintas as diferenças culturais, mas, pelo contrário, potencializadas a partir de si mesmas e do intercâmbio entre elas.
Outro aspecto prático de uma filosofia interculturalmente transformada é o exercício, baseado nas exigências da tolerância e pluralismo, que permite o direito de os povos dizerem não apenas como percebem, de modo distinto, o mundo, mas principalmente que permita-lhes construírem o mundo desde suas diferentes visões. Por último, segundo o autor, essa filosofia transformada pelas relações interculturais tem a utilidade prática de contribuir na busca de alternativas concretas à globalização neoliberal (que é a globalização de uma forma particular de vida, economia, cultura, democracia e outros modos de uniformização), alternativas que podem criar uma sociedade baseada, não mais em relações de competição e dominação, mas na solidariedade entre culturas que se comunicam sem perder o que cada uma tem de mais próprio. Isso tudo faz parte do novo conceito de filosofia.
Em conclusão, Fornet-Betancourt apresenta um novo conceito de Filosofia. Em lugar de uma filosofia que defende um único logos, ele propõe múltiplas filosofias, a partir das diferentes racionalidades enraizadas nas diversas matrizes culturais. Toda filosofia nasce a partir de uma determinada cultura, inclusive a filosofia europeia. Mas se a filosofia pensa a partir de um contexto cultural bem definido e a racionalidade de cada cultura está carregada de preconceitos e não verdades, então ela só se constitui como verdadeiro pensamento filosófico se houver o confronto intercultural. O diálogo entre as diversas culturas é essencial para tornar nosso filosofar menos preconceituoso e arrogante, mais crítico, mais sensível e respeitoso em relação às múltiplas formas de racionalidade e, talvez, mais próximo da verdade. E se esse novo conceito de filosofia for aceito, então há filosofia na América Latina, na Europa, na Ásia tanto quanto nos Estados Unidos e na Europa.
Enrique Dussel e Lévinas
Quais
são as características da ética de Dussel? E qual a relação com a ética de
Lévinas?
Influência Capital do Pensamento Ético de Lévinas
Enrique Dussel nasceu em 1934 na Argentina e reside no México, para onde foi obrigado a exilar-se em 1974. No link citado você pode encontrar tudo sobre a vida e obra dele, inclusive, você pode ler digitalmente um grande número de seus livros e artigos.
Propomos o estudo da Ética e Política desse filósofo como representativo da filosofia da libertação, pelos seguintes motivos:
- É o autor que, desde 1968 e até hoje, se dedica de modo contínuo a esse movimento;
- Talvez seja o filósofo desse movimento que mais dialogou sobre a questão da filosofia da libertação não só com os pensadores do passado, mas igualmente com os principais filósofos da atualidade (entre outros, Karl-Otto Apel, Júrgen Habermas e Richard Rorty);
- Sua filosofia política e ética, enfim, tem sentido universal. Apesar de ou talvez exatamente por criticar fortemente o eurocentrismo, sua ética e política partem do pensamento do judeu lituano-francês Emmanuel Lévinas, que, por primeiro, criticou duramente a filosofia tradicional da cultura grega.
Lévinas pensa a partir de sua cultura judaica, o que lhe permite fazer severas críticas à ontologia Greco-europeia. Ele começa criticando a concepção de Ser da tradição ocidental, pois o conceito de ser engloba e reduz tudo o que existe ao ele; fora do ser não existe nada. Foi por esse motivo que as éticas tradicionais nunca reconheceram a alteridade do Outro. O Ser é todo poderoso e reduz tudo a ele, inclusive a alteridade do Outro. Mas, dessa forma, a metafísica tradicional dissolve aalteridade do Outro, o Outro desaparece nesse pensamento.
Mas a filosofia moderna coloca o Eu no lugar do Ser. O Eu moderno substitui o Ser tradicional e, por isso, como o Ser, também ele é todo poderoso. Fora dele não há nada. O Outro, assim, na tradição moderna, foi reduzido ao Eu. O máximo que o Eu pode fazer é reconhecer o Outro como semelhante a ele; mas o Outro não é semelhante ao EU. Eu e o Outro somos entes totalmente separados, não podendo ser assumidos por nenhum conceito. Por isso, segundo Lévinas, não há possibilidade de uma ética verdadeira, uma vez que o Outro – fundamento da ética - não pode ser reduzido ao Ser ou ao EU; está fora desses conceitos. Por isso, o Eu e o Ser devem ser destronados a fim de tornar possível uma ética verdadeira a partir da interpelação do outro.
O absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A coletividade em que eu digo “tu” ou “nós” não é um plural de “eu”. Eu, tu não são indivíduos de um conceito comum. Nem a posse nem a unidade do número, nem a unidade do conceito me ligam a outrem. Ausência de pátria comum que faz do Outro - o Estrangeiro; o Estrangeiro que o perturba em sua casa. Mas o Estrangeiro quer dizer também o livre. Sobre ele não posso dominar, porquanto escapa ao meu domínio num aspecto essencial, mesmo que eu disponha dele: é que ele não está inteiramente em meu lugar. Mas eu, que não tenho conceito comum com o Estrangeiro, sou, tal como ele, sem gênero. Somos o Mesmo e o Outro (LÉVINAS, 1990, p. 26).
Como Lévinas diz no texto, “somos o Mesmo e o Outro”. Somos o Mesmo enquanto ambos somos entes existentes, mas cada um diferentediante da alteridade do Outro. (Veja que na relação eu e João, João é outro para mim e eu sou outro para ele). Por isso, o que fazem as éticas tradicionais ocidentais é reduzir a dimensão “Outro” ao “Mesmo”. A dimensão da alteridade do Outro, sendo reduzida ao Mesmo, é englobada, assimilada e assim deixa de ser alteridade: o Outro enquanto outro não existe mais, pois foi reduzido ao Mesmo.
Por que o Outro nunca pode ser reduzido ao Ser ou ao Eu todo poderoso da modernidade? Porque são entes totalmente separados entre si. O Outro nunca se deixa compreender, pois seu rosto que me interpela se revela para mim como o infinito, isto é, como o transcendente que nunca pode ser compreendido a partir do Eu ou do Ser; ele escapa ao poderio do Ser e do Eu que querem tudo compreender, englobar e dominar. Não há nenhum conceito que possa englobar o eu e o outro, porque são entes essencialmente diferentes, São alteridades.
Por outro lado, o Ser e o Eu constituem a Totalidade do nosso mundo liberal-capitalista; fora dessa Totalidade (o termo o diz claramente) nada de realmente existente pode haver; o Outro enquanto outro está fora da Totalidade. E assim, nasce o seu conceito oposto: a Exterioridade. Essa última categoria é extremamente importante para a construção da ética e das políticas de Lévinas e Dussel. Fora da Totalidade do Primeiro Mundo (Europa, Estados Unidos e Japão), há apenas os Outros que são excluídos da Totalidade vigente. Assim, o conceito de Exterioridade permite a Lévinas pensar a alteridade do pobre, oprimido, viúva, órfão, estrangeiro e de todos os que estão fora do sistema totalitário e a Dussel permite pensar, sobretudo, as vítimas da violenta conquista colonialista europeia e os excluídos ou os que estão no exterior do sistema-mundo.
Mas é preciso prestar atenção, segundo Lévinas, pois:
Enquanto saber, o pensamento é o modelo pelo qual uma exterioridade se encontra no interior de uma consciência que não cessa de se identificar, sem ter de recorrer para tal a nenhum signo distintivo e é Eu: o Mesmo. O saber é uma relação do Mesmo com o outro em que o outro se reduz ao Mesmo e se despoja de sua alteridade em que o pensamento se refere ao outro, mas em que o outro já não é outro, em que ele já é o mesmo, já meu... (LÉVINAS, 1991, p. 14).
Segundo o autor, o pensar seria a adequação do saber ao ser que nos leva ao pensamento totalitário, que tudo abarca, não deixando nada de exterior a ele; o Outro é reduzido ao Eu, ao Mesmo. Assim, as éticas da filosofia ocidental - que sempre foram pensadas a partir do Eu e do Ser - não dão lugar para a exterioridade ou alteridade do Outro. Engolem o Outro, deixando aparecer apenas a dimensão do Mesmo.
Mas o Outro se revela na epifania do rosto. O rosto é um Enigma, segundo Lévinas. O rosto se manifesta sem se revelar completamente; é incompreensível como o infinito. Ele usa o termo epifania para expressar essa originalidade do rosto. Por isso, ele chamará essa revelação do Rosto, enquanto não é simplesmente um fenômeno, como Enigma. O que mais importa no rosto não é o aspecto empírico, mas a significação que dele emana.
Para o autor, o enigma é intervenção de um sentido que desarranja o fenômeno. Portanto, é um modo de significar que não é nem um desvelar-se nem um velar-se, escapando ao binômio do ‘ser ou não ser’. Não se torna cativo de minha consciência. O enigma é uma abertura ao transcendente. O face a face, o rosto envia uma mensagem que nos ultrapassa. Estamos fora das estruturas do ser e saber. Meu universo foi rompido, porque aconteceu uma nova ordem. O rosto do outro é uma presença misteriosa que está sempre em retirada.
Na epifania do rosto, entretanto, o Outro me interpela para que eu o aceite em sua nudez, como ele é. O apelo do outro aparece como um imperativo que não é presente e me acusa por meu atraso. Aqui o eu não tem escolha, não pode recusar a partir de sua liberdade. O sujeito se encontra investido, desde sempre, como único responsável pelo outro.
Como Caim, podemos perguntar por que somos responsáveis pelo Outro. Lévinas responderá repetindo as palavras de Dostoievski: “Todos somos culpados de tudo e de todos, e eu mais que todos os outros”. Sou responsável também por um mal que não cometi. “A identidade do sujeito mostra-se aqui, não por um repouso em si, mas por uma inquietude que me persegue fora do núcleo de minha substancialidade” (LÉVINAS, 1991, p. 181).
É preciso tirar o pão de minha boca para dá-lo ao outro. É nessa proximidade entre eu e o outro que se pode entender porque o rosto significa o Infinito: “O Infinito vem à idéia no significado do rosto. O rosto significa o Infinito”. (LÉVINAS, 1991, p. 161). E isso, segundo Lévinas, de tal forma que quanto mais eu for justo, tanto mais serei culpável. Como vemos, estamos longe da ética tradicional que é fundada no trono do Eu e na totalidade do ser.
Esses elementos da ética Lévinasiana vão inspirar a Filosofia da libertação de Enrique Dussel, da qual vamos estudar a seguir alguns pontos importantes das duas vertentes fundamentais: a ética e a política.
A Ética da Libertação de Enrique Dussel
Dussel é licenciado em Teologia (Paris), doutor em Filosofia (Madrid), doutor em História (Sorbonne), doutor honoris causa pelas universidades de Friburgo (Suíça) e de San Andrés de La Paz; presidente do Centro de Estudos Históricos Latino-Americanos (CEHILA); professor convidado por um semestre nas universidades de Frankfurt, Notre Dame, Califórnia State University (Chicago), Vanderbild, Duke, entre outras. Entre seus livros, podemos destacar: Para uma ética da libertação latino-americana(I-V tomos); Filosofia da libertação; Caminhos de libertação latino-americana; Uma década de sangue e esperança; Ética comunitária; Liberta o pobre!; Ética da libertação na idade da globalização e exclusão; El último Marx. Além de muitos livros sobre Marx ou sobre os confrontos de sua filosofia com o dos expoentes do pensamento contemporâneo. Também são muito conhecidos seus livros sobre a política e a teologia da libertação.
Os títulos dos livros citados já sinalizam a preocupação do autor com os pobres, desde o início, com os da América Latina e, aos poucos, pelas vítimas de todo o planeta. Diante do assustador crescimento dos excluídos, diante da perspectiva desesperadora das vítimas, que nos pedem pão e que nos interpelam para não matá-las, surge o imperativo de uma ética de libertação que, não seja apenas uma teoria, mas igualmente uma práxis, com vistas a todos terem direito não só a sobreviver, mas a viver bem e com dignidade.
Dussel foi discípulo de Heidegger, Paul Ricoeur e Lévinas. O pensamento de Dussel deve muito a todos esses pensadores; mas é a filosofia Lévinasiana da exterioridade que marca fundamentalmente sua ética da libertação. Marx também é interpretado pelo autor como sendo um pensador a partir da exclusão (os proletários marginalizados da sociedade hegemônica de seu tempo) e o influenciará decisivamente.
Partindo da exterioridade, o autor vai fazer uma crítica profunda contra o eurocentrismo do pensamento ocidental, que não permite ouvir a voz do excluído e reconhecê-lo como Outro, assimilando-o a seu sistema, violentando sua identidade. Nesse contexto, a filosofia hegemônica é consequência e instrumento desse pensamento do mundo como dominação. O filósofo africano Eboussi Boulagra também critica essa violência do pensamento europeu e norte-americano: “A filosofia é um dos símbolos e instituições que o Ocidente transportou para fora de si e a ofereceu como maneira de assimilar os outros” (apud DUSSEL, 2002, p. 76). A relação do dominador-dominado é assim expressa por Boulagra:
A oposição dominador-dominado repercute em todas as esferas, onde se repete a contradição dos que são em referência aos que não são, dos que têm sobre os que não têm. O vencido define-se por suas privações, que proclama como a superioridade do senhor. A filosofia entre muitas atividades e objetos aparece como alegoria do poder do vencedor (apud DUSSEL, 2002, p.74)
Parece urgente para nós, que queremos atuar no domínio da filosofia, repensar nosso conceito de filosofia e pensar a partir da exterioridade, fora do eurocentrismo dominador. Mas é possível esse pensamento a partir do pobre e da vítima? E se possível, como elaborar uma ética da libertação da vítima? Dussel, nos últimos anos, visando tornar sua ética crítica e factível, está em constante debate com os intelectuais e vítimas do mundo inteiro, discutindo, também, com os filósofos europeus e norte-americanos, mostrando os efeitos perversos do eurocentrismo.
Dois Tipos de Ética
Dussel faz uma pesquisa histórica das éticas nas culturas antigas, distinguindo duas vertentes diferentes. De um lado, temos o Egito africano-banto, os semitas do Oriente Médio e o mundo mesoamericano asteca e inca que valorizam a vida e a corporeidade, como algo muito positivo, de tal forma que se realiza a mumificação dos corpos no Egito e acredita-se na ressurreição da carne. Por isso, nascem normas éticas concretas, carnais, históricas, comunitárias. Assim, no Egito, entre outros, temos o texto, referente ao juízo final em que diante de Ka, a pessoa exclama:
Não cometi iniqüidade contra os homens... Não empobreci um pobre em seus bens... Não fiz padecer fome... Não acrescentei peso à medida da balança... Não roubei com violência... Não roubei pão... Satisfiz a Deus cumprindo o que ele desejava. Dei pão ao faminto, água ao sedento, veste ao que estava nu e uma barca ao náufrago... (apud Dussel, 2002, p. 27).
No prólogo do Código de Hammurabi, lê-se:
Naquele dia Anum e Enlil pronunciaram o meu nome... Hamurabi o príncipe piedoso, temente a deus, para fazer surgir justiça na terra, para eliminar o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco. (apud DUSSEL, 2002, p. 28)
Da cultura inca-quichua, temos:
Mesmo que fosse pobre ou miserável,mesmo que sua mão e seu pai fossem os pobres dos pobres...não se via sua linhagem,só se atendia a seu gênero de vida,à pureza de seu coração,a seu coração bom e humano, firme,dizia-se que tinha o divino em seu coração,que era sábio nas coisas divinas. (apud DUSSEL, 2002, p. 32).
De outro lado, temos a cultura do mundo “indo-europeu” do império chinês ao romano, incluindo a Índia e a Grécia, em que a vida é considerada negativamente. Aqui se incluem as visões do mundo tais como as dos hindus na Índia, persas no Irã, gregos e romanos no Mediterrâneo, budistas desde o Nepal, e, por influência indireta, taoístas e confucionistas na China. De modo geral, para essa cultura, o nascimento de alguém é a “queda” da alma por uma falta cometida antes do nascimento e a morte física como um verdadeiro “nascimento” para a verdadeira vida. A “libertação’’ é considerada exclusivamente como “libertação da alma” da prisão do corpo, da matéria, da pluralidade da dor, do “pecado original’’ (DUSSEL, 2002, p. 33). Basta citar dois autores (Mani e Plotino) para ver como, nessas culturas, se concebia negativamente a vida e o corpo Mani, o corpo participa do Princípio perverso:
Então Adão olhou em torno de si e chorou. Elevou sua voz poderosa como de um leão que ruge, arrancou os cabelos, bateu no peito e exclamou: malditos, malditos os que formaram meu corpo, os que acorrentaram minha alma; malditos os rebeldes que me escravizaram (apud DUSSEL, 2002, p. 35).
Plotino diz que o homem é essencialmente alma, por isso deve purificar-se de tudo o que é matéria e corpo:
A purificação consiste em isolar a alma, não a deixando se unir às coisas; não olhá-las mais; não ter mais opiniões estranhas à sua natureza (divina). Quanto à separação, (o êxtase) é o estado da alma que não se encontra mais no corpo, como a luz que não se encontra mais nas trevas (PLOTINO, 2000, ENÉADA II, 6,5).
O modo positivo de olhar para corporeidade e a vida (do Egito africano-bant, dos semitas do Oriente Médio – veja inclusive o sermão da montanha - e do mundo meso-americano asteca), de um lado, e o modo negativo (das culturas do mundo indo-europeu) de concebê-las, do outro, têm consequências bem diferentes em relação à ética.
Os que valorizam positivamente a vida, o corpo e o mundo sensível desenvolvem uma sensibilidade muito grande diante da dor do pobre, órfão, viúva, estrangeiro e excluído: ouvem seus gritos de dor e se sentem responsáveis por eles. Os que veem negativamente a vida, valorizando apenas o espiritual (a alma), não conseguem perceber a interpelação ética da vítima que têm fome, está nu, está submetido à escravidão física ou de dominação e colonização. Parece não ser casual que Aristóteles defenda que muitos entes humanos são, por natureza, escravos. Por esse motivo, Dussel abandona a via tradicional helenista de elaborar filosoficamente a ética e vai se inspirar nas normas éticas das culturas do Egito africano-bantu, dos semitas do Oriente Médio e do mundo meso-americano e inca e nos autores que continuaram essa linha de pensamento ético a partir da exterioridade da vítima, seguindo a linha de Marx e Lévinas.
A vida humana é a matéria ou o conteúdo da ética da libertação. A ética de Dussel não pode ser uma ética formal como as de Kant, Apel e Habermas; trata-se de uma ética material ou de conteúdo. Ele parte do fenômeno da globalização, que exclui, paradoxalmente, a maioria da humanidade. É um problema de vida ou morte. A matéria da ética da libertação é a vida humana, vida humana que não é um conceito, uma idéia, nem um horizonte abstrato, mas o modo real de existir de cada ser humano concreto: a vida é condição absoluta da ética e exigência de toda libertação. A totalidade do sistema-mundo não permite que a vida da maior parte da população se reproduza se desenvolva e alcance a dignidade mínima de existir como um ser humano com dignidade.
Não se deve estranhar, então, que essa Ética seja uma ética da afirmação total da vida humana ante o assassinato e o suicídio coletivo para os quais a humanidade se encaminha se não mudar seu agir irracional.
A Ética da libertação pretende pensar filosófico-racionalmente essa situação real e concreta, ética, da maioria da humanidade presente, próxima de um conflito trágico de proporções nunca vistas na história da espécie humana, filogeneticamente falando (DUSSEL, 2002, p. 11).
Exterioridade e Corporeidade
Essa ética, como a de Marx e Lévinas, parte da exterioridade da vítima. Isso significa que essa filosofia libertadora pensa partir dos que estão fora do Sistema-mundo: os excluídos da sociedade hegemônica. Aliás, esse é o método analético da filosofia da libertação de Dussel. Em vez de fazer um discurso a partir de dentro da totalidade do sistema vigente, sua filosofia parte de fora do sistema que exclui parte da exterioridade das vítimas excluídas. O logos não é mais o dos vencedores, mas o dos vencidos.
Do método analético só é possível falar a partir da exterioridade, fora do centro europeu e norte-americano. Esse conceito de exterioridade permite pensar a partir das primeiras vítimas da modernidade primitiva, os nativos da América (segundo Dussel a modernidade primitiva já começou em 1492, com a ‘descoberta’ dos Europeus da Ameríndia cujos nativos, foram brutalmente dominados e colonizados; e o ouro e a prata saqueados farão a riqueza de Portugal, Espanha e Inglaterra, país este último em que florescerá a primeira exploração capitalista dos proletários; a modernidade adulta ou madura começaria com Descartes).
Como já vimos na aula 4, os europeus dizimaram os indígenas de modo cruel, destruíram as culturas ameríndias para impor-lhes sua civilização cristã europeia. Os conquistadores europeus não respeitaram os nativos, não os reconheceram como outros; nem tão pouco como entes semelhantes com os mesmos direitos que eles. Dussel fala que 1492 foi o início da ocultação do outro, tanto que, mesmo estando na América, foram chamados de ‘índios’. Por tanto, os habitantes de nosso continente estão, desde o início, fora do sistema moderno europeu. Agora podemos compreender a importância do conceito de exterioridade. Até agora toda a nossa história era contada (e a filosofia pensada) a partir de dentro do Sistema hegemônico. Dessa forma, era impossível aos nossos nativos sair do ocultamento. Tratava-se sempre da visão idealizada dos vencedores. Agora vai aparecer a visão dos vencidos e se pode realmente falar a partir das culturas indígenas. Do modo de ser dos escravizados afro-asiáticos, da mulher dominada pelo machismo, das crianças abandonadas na rua e de todo e qualquer excluído ou vítima da sociedade hegemônica.
O conceito de exterioridade torna a vítima visível e encarnada num corpo. A corporeidade é um conceito complementar da exterioridade. Esse conceito de corporeidade, conforme visto, já vigia em várias éticas primitivas. Nelas o ser humano não era visto como alma, mas como corpo que tem espírito. Por acaso você já viu uma alma? É, pois, a corporeidade que tira o ser humano o esquecimento, tornando-o visível e concreto. Tanto eu como o Outro nos encontramos a partir do corpo de cada um. Vejo o pobre que me pede comida, ouço o explorado gritando de dor, o injustiçado que me pede justiça, a vítima que me pede que eu a aceite em sua nudez, tal como ela é. É no carpo que se desenvolve a sensibilidade que me possibilita a acolher o Outro em sua alteridade.
Assim, as noções de corporeidade e exterioridade permitem não apenas criticar o sistema hegemônico que exclui, tornando visível o que estava oculto: as vítimas e todos os estigmas que a sociedade hegemônica lhe impinge para diminuí-las e ocultá-las, mas, sobretudo, permite a elaboração de uma ética que tenha, a partir dos excluídos, estratégias e propostas concretas para transformar instituições, costumes, normas e tudo o que gera vítimas.
O texto que segue, falando do povo indígena (extraído da mensagem do Exército Zapatista de Libertação Nacional), mostra como da ‘não-consciência’ ou posição ingênua passa-se agora à consciência ético-crítica:
Os mais velhos dos velhos de nossos povos nos falaram palavras que vinham de muito longe, de quando nossas vidas não eram, de quando nossa voz era calada. E caminhava a verdade nas palavras dos mais velhos dos velhos de nosso povo. E aprendemos em suas palavras que a longa noite de dor de nossa gente vinha das mãos e das palavras dos poderosos, que nossa miséria era riqueza para uns quantos, que sobre Os mais velhos dos velhos de nossos povos nos falaram palavras que vinham de muito longe, de quando nossas vidas não eram, de quando nossa voz era calada. E caminhava a verdade nas palavras os ossos e o pó de nossos antepassados e de nossos filhos se construiu uma casa para os poderosos, e que nessa casa não podia entrar o nosso passo, e que a abundância de sua mesa se enchia com o vazio de nossos estômagos, e que seus luxos eram paridos por nossa pobreza, e que a força de seus tetos e paredes se levantava sobre a fragilidade de nossos corpos, e que a saúde que enchia seus espaços vinha da morte nossa, e que a sabedoria que ali vivia de nossa ignorância se nutria, que a paz que a cobria era guerra para a nossa gente (apud DUSSEL, 2002, pp. 313-314).
Esse texto, que fala da realidade indígena, descreve, mudando o que deve ser mudado, a situação de todos os excluídos. Tamanha crueldade humana torna necessária a crítica ética ao sistema estabelecido. E deve ser feita a partir da vítima, da negação da produção e reprodução da vida do ente humano; aprende-se que a abundância dos poderosos se estabelece na miséria dos excluídos.
A Organização das Nações Unidas (ONU) constatou a existência de dois bilhões de habitantes de nosso planeta que são desesperadamente pobres e que mais de um bilhão de pessoas vive diariamente com uma renda que não chega a 1 dólar. A ética da libertação assume o momento crítico dos grandes críticos como Feuerbach, Schopenhauer, Nietzsche, Horkheimer, Adorno, Marcuse e, particularmente, Freud, Marx e Lévinas, quando eles criticam aspectos da dominação da época e da razão moderna. Essa sociedade que produz vítimas é criticável por que não permite à grande maioria viver. E a critica sempre será necessária, pois, dados os limites do ser humano, toda sociedade, por mais perfeita que seja sempre produzirá vítimas.
Responsabilidade e Viabilidade da Ética
A Ética de libertação como a de Lévinas acentua a responsabilidade de todos nós a ouvir e acolher o apelo das vítimas e tomá-las a nosso cargo. Não há escolha para nós. A responsabilidade, como para Lévinas, é anterior à liberdade; desde sempre estou compromissado com as vítimas que me interpelam. E essa aceitação do Outro em sua total alteridade é completamente gratuita. Além disso, meu compromisso não é só reconhecer o Outro como vítima, mas, sobretudo ajudá-lo a transformar tudo o que o torna vítima e permitir que ela deixe de sê-lo e possa produzir, reproduzir e desenvolver a vida em abundância.
Mas, embora devamos ter esperança e utopia, nossos projetos elaborados, a partir e junto com as vítimas, devem ser factíveis. Isto é, devem ser algo bem planejado e que tenham real possibilidade de realizar-se, de acontecer técnico-eticamente, pela razão prático-material; em outras palavras, os projetos devem ser viáveis e sustentáveis. Assim, fica claro que a ética da libertação não é apenas um discurso como em geral são as outras, mas sim um discurso que transforma nossa sociedade.
Deixemos, por fim, que uma vítima fale, escutemos a palavra da índia guatemalteca, Rigoberta Menschú, prêmio Nobel da Paz de 1992:
Eu não sou dona de minha vida, decidi oferecê-la a uma causa. Podem me matar a qualquer momento, mas seja em uma tarefa em que sei que meu sangue não será algo inútil, mas será mais um exemplo para os companheiros. O mundo onde vivo é tão criminoso, tão sanguinário, que de um momento para outro me tira a vida. Por isso, como última alternativa só me resta a luta.... e eu sei e confio que o povo é o único capaz, somente as massas são capazes de transformar a sociedade. E não é mera teoria apenas (apud DUSSEL, 2002, p. 416).
Ela afirma que só as massas sofridas têm o poder de transformar a realidade. Dussel também acredita nisso. Mas o que temos nós intelectuais filósofos a ver com essa transformação visando a um mundo mais justo? Acabou a ilusão de que nossas teorias sejam capazes sozinhas de transformar o mundo. Os intelectuais devem denunciar as causas que criaram e continuam sustentando esse sistema de dominação e colonização que exclui, devem explicar aos vitimados as razões causais que levaram a eles se encontrarem na situação lamentável em que estão. Os pensadores devem apoiar os projetos das classes oprimidas, esclarecendo-os no que concerne à viabilidade técnico-ética e às consequências desses projetos de libertação, permanecendo e trabalhando ao lado deles de modo solidário. Em outras palavras, os intelectuais orgânicos devem estar ao lado desses movimentos, sem pretender conduzi-los.
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